As Comunidades de Aprendizagem

A formulação do conceito de comunidades de aprendizagem não é de hoje. A sua origem remonta aos movimentos da Educação (Escola) Nova que, embora expressando ideias diferenciadas conforme as visões pedagógicas dos seus criadores (de Montessori, de Decroly, de Freinet, etc), adoptam em comum os princípios da aprendizagem construtivista e da utilização de metodologias activas, centradas na realização de projectos, na resolução de problemas e na aprendizagem cooperativa. Estes princípios implicavam uma profunda renovação na organização escolar e na mudança das relações professor-aluno e aluno-aluno. No entanto, a natureza comunicativa dos meios (entre outros factores, evidentemente) raramente permitiram a realização destes princípios. O mesmo não se passa na configuração comunicativa actual em que os suportes tecnológicos facilitam a abertura do caminho da renovação da escola no sentido da formação de comunidades de aprendizagem.

Importa esclarecer que a formação da ideia de comunidade, o “sentimento do nós” como lhe chama Gurvitch (1979), não passa necessariamente por factores territoriais físicos, mas pelo desenvolvimento do “sentimento subjectivo dos participantes de construir um todo” (Weber, 1944:33). Na linha destes autores há múltiplas maneiras de estar ligado pelo todo e no todo, e a ideia de comunidade é hoje entendida “como um espaço de construção (um território simbólico) marcado pela extensão e pela profundidade da interacção entre os indivíduos em construir esse todo” (Silva,1998:95). Neste enquadramento, a natureza flexível e policêntrica da Internet tem funcionado como suporte para as relações interpessoais, ajudando a superar o característico individualismo da sociedade de massas, como sugerem várias reflexões sociológicas.

Michel Maffesoli (Maffesoli,1990), sociólogo atraído pelas abordagens comunitárias da vida urbana na sociedade pós-moderna, observa que as novas tecnologias geram uma matriz comunicacional de proximidade, o sentido de pertença, o desejo de estar-juntos na partilha de motivações e interesses comuns. Através da múltiplas mediações, retornamos ao tempo das tribos, não como as de outrora baseadas no território físico, mas tribos do conhecimento, do afectivo e do social, às quais os indivíduos se agregam voluntariamente para partilhar necessidades, desejos e interesses da mais variada ordem. Neste sentido, esclarece que ser solitário, hoje, não significa viver isolado já que, segundo as múltiplas ocasiões que se apresentem, o indivíduo solitário pode agregar-se a este ou àquele grupo, a esta ou àquela actividade.

Boaventura de Sousa Santos (Santos, 1994), num registo político e social, enfatiza a "arqueologia virtual presente" para favorecer uma emancipação progressiva das comunidades. A arqueologia virtual, cuja escavação é orientada para margens, para a periferia, para a inteligibilidade, dando preferência a estruturas descentralizadas, não hierárquicas e fluidas, potencia a constituição de comunidades de fronteira, caracterizadas por uma identidade em processo de reconstrução e de reinvenção, na medida em que é através dela que se podem desabrochar novas energias emancipatórias e realizar os princípios da autonomia, da participação e da solidariedade. Embora o autor não refira textualmente as redes de comunicação, a Internet, pelos princípios que lhes são atribuídos - mobilidade, flexibilidade e policentrismo - pode constituir-se como um dos suportes adequados à concretização desta arqueologia virtual, reinventando as alternativas de prática social.

Pierre Lévy (Lévy, 1997) ao efectuar uma reflexão sobre os espaços de identidade do ser humano (a terra, o território e o mercado) considera que a tecnologia digital e as redes de comunicação fizeram emergir um novo espaço antropológico, o Espaço do Saber, saber não apenas do conhecimento científico, mas do saber que qualifica o Homo Sapiens: um saber-viver, um saber coextensivo à vida. Trata-se de um espaço virtual - um não-lugar - , mas que já está presente (ainda que dissimulado, disperso, travestido e misturado) e é habitado e animado por intelectos colectivos que procuram formas de comunicação inauditas. A constituir-se efectivamente este novo espaço antropológico, considera o filósofo que se “abriria um novo espaço de liberdade tanto às comunidades como aos indivíduos. A partir de hoje o conhecimento, o pensamento, a invenção, a aprendizagem colectivos oferecem a cada um a participação numa multiplicidade de mundos, lançam pontes sobre as separações, as fronteiras e as escalas graduadas do território.”(idem:201).

Voltando ao terreno da escola, estas reflexões sobre as implicações antropológicas das TIC permitem pensar as escolas como comunidades de aprendizagem construídas com base na partilha de motivações comuns, de afinidades de interesses, de conhecimentos, de actividades, de projectos, num processo de cooperação e interacções sociais entre escolas e outras instituições comunitárias, entre autores e leitores, independentemente das proximidades geográficas e domínios institucionais.

A tecnologia mudou radicalmente a medida da escala espacial: o longe e o próximo não existem em termos virtuais, a medida faz-se pela implicação dos actores em projectos de interesse e motivação comuns que desejam partilhar. Deste modo, os professores e os alunos podem não só desenvolver interacções satisfatórias entre si, mas também, cada escola e/ou cada um dos seus membros, podem estabelecer relações plurais e colaborativas com outras escolas, com colegas, com peritos ou instituições diversas.

A abertura ao exterior estabelece um mapeamento dinâmico entre o local e o global, e a escola, longe de se descaracterizar no fenómeno da globalização, vê reforçada e afirmada a sua autonomia numa relação interactuante, de co-responsabilidade e de solidariedade com os outros centros educativos. Como esclarece Thompson (1998) o eixo global-local merece uma reavaliação pois o fenómeno global da comunicação não eliminou o seu carácter localizado da apropriação. E se tal reavalição é feita para o quadro da comunicação de massas, ganha mais pertinência no tempo das actuais tecnologias. A Internet é uma rede global, mas, ao mesmo tempo, é local em todos os seus pontos. O seu funcionamento depende de infra-estruturas que remetem para a acção dos Estados, das Universidades e de Empresas capazes de mobilizar os recursos necessários para a sua criação e manutenção dos pontos locais de acesso, mas a sua viabilidade também depende da existência da acção local de pessoas e comunidades. Ou seja, é globalizada na difusão, mas simultaneamente é localizada do ponto de vista da apropriação e da participação. Daí que já se tenha designado este novo padrão comunicativo de glocalizado, em que o global e o local se cruzem e interagem de forma dinâmica (Silva, 2000a). Neste tipo de rede, qualquer ponto local (o professor, a escola, etc.) pode transformar-se no elemento de entrada no sistema global, afirmando a sua autonomia peculiar. Este padrão constitui uma potencial plataforma para fazer emancipar progressivamente as comunidades, na medida em que através dela se podem desabrochar energias emancipatórias e realizar os princípios da autonomia, da participação, da colaboração e da solidariedade. É neste processo interactuante entre o global e o local da rede (glocalizado) que radica grande parte do sucesso da Internet e que haja uma procura crescente da sua apropriação quotidiana pelos indivíduos e pelas organizações.

Estaremos já a viver neste novo paradigma educacional? Dias (1992) e Costa Pereira (1993), ao formularem nos inícios da década de 90 a constituição de um novo paradigma educacional, que emergiria gradualmente através da aplicação das tecnologias multimédia interactivas no processo educacional, previam que a sua formação ocorresse num futuro mais ou menos longínquo. No entanto, pelo que já referia Lopes (1994) também nos inícios da década ao evocar uma multiplicidade de projectos telemáticos orientados para escolas de ensino não superior, aos quais acresce a dinâmica actual proporcionada pelos programas dos projectos “Nónio Século XXI” e “Internet nas Escolas” [1] , permitem-nos dizer que há uma tendência de mudança. Sob uma aparente normalidade algo está a acontecer, algo está a mudar com vista à renovação da escola e à sua transformação em Comunidades de Aprendizagem.


 


[1] Programas de iniciativa do Governo Português que visam preparar a escola para os desafios da Sociedade da Informação. O Programa Nónio – Século XXI é uma iniciativa do Ministério da Educação, lançada em Outubro de 1996 e ainda em curso, com o objectivo de apoiar e adaptar o desenvolvimento das escolas às novas exigências: de novas infra-estruturas, de novos conhecimentos e de novas práticas. Este programa comporta 4 subprogramas: i- Aplicação e desevolvimento das TIC no sistema educativo; ii- Formação de professores em Tecnologias de Informação e Comunicação; iii- Criação e desenvolvimento de software educativo; iv- Difusão da informação e cooperação internacional. Por sua vez, o Programa Internet na Escola constitui uma iniciativa do Ministério de Ciência e da Tecnologia, lançada em meados de 1997 e ainda em curso, que contempla a instalação na biblioteca/mediateca de todas as escolas de um computador com capacidades multimédia e ligação à Internet.