Repercussões das TIC na organização escolar e curricular

Na linha da relação entre as tecnologias e as estruturas educativas, há quem advoge uma transformação radical propondo o fim da escola e a sua substituição por um novo “sistema inteligente” de aprendizagem denominado "hiperaprendizagem", baseado na extraordinária velocidade e alcance da nova tecnologia, e no imprecedente grau de conexidade entre conhecimento, experiência, hipermédia e inteligências (humanas e não humanas) para transformar o conhecimento e o comportamento através da experiência (Perelman, 1992). Já se questionou noutra ocasião esta posição, denominada de tecnólatra (Silva, 1999), visto que na sua defesa, não obstante a justeza de algumas críticas que o autor atribui à escola, não se vislumbram razões de ordem social, cultural ou pedagógica. A principal razão invocada é de ordem económica, defendendo-se a comercialização da educação como forma de conseguir o lucro necessário para accionar a inovação tecnológica.

Pensamos que a ideia de escola como memória da humanidade, como sistema de construção do saber, de enriquecimento moral e social, um espaço em que se considere cada aluno como um ser humano à procura de si próprio, em reflexão conjunta com os demais e com o mundo que o rodeia, tem ainda razão de existir neste início de um novo milénio. Precisa, sim, é de ser profundamente renovada e as actuais TIC contêm os ingredientes necessários para favorecer essa mudança.

Situamos as principais repercussões provocadas pela integração das TIC ao nível da organização, na relação com os conteúdos e na metodologia.

Repercussões organizativas

As repercussões organizativas compreendem os aspectos relacionados com a questão da centralização/descentralização, da flexibilidade do tempo e do espaço escolares e da adaptação curricular.

Na questão da centralização/descentralização trata-se de considerar as vias de tomada de decisão entre os vários níveis do sistema (macro, meso e micro), tanto no domínio da administração, da construção e desenvolvimento do currículo, como no da investigação e formação. Ribeiro Gonçalves (1992:96) identifica a presença de três vias clássicas: i) a central-periférica, definida de cima para baixo, principalmente através de decretos e leis; ii) a periférica-central, pelas propostas que as escolas e os professores fazem chegar à instância superior, mas que, dada a atomização, são filtradas e ficam descontextualizadas; iii) a periférica-periférica, pelas experiências que professores isolados realizam, mas não têm possibilidade de difundir e alargar. Equacionado as vantagens e desvantagens de cada via, o autor propõe a criação de uma via colaborativa através do estabelecimento de redes interescolas, intralocalidades e interlocalidades. Ora, os ingredientes constitutivos das TIC vêm precisamente ao encontro da construção desta via colaborativa, possibilitando a criação de uma rede eficaz de comunicação entre as escolas e com outros espaços extra-escolares, abrindo-as ao exterior e à associação em territórios educativos, independentemente de factores geográficos e domínios institucionais.

A contribuição para a gestão/flexibilização do tempo e do espaço escolares e para a adaptação curricular passa pela possibilidade em se estabelecer uma comunicação permanente entre os conteúdos a aprender e os alunos, a qualquer hora e desde qualquer ponto da rede, permitindo também que o professor faça as alterações necessárias ao seu programa, ajuste os conteúdos e o seu modo de apresentação às características e necessidades dos alunos.

Trata-se, no fundo, de efectuar transformações no vigente modelo de organização pedagógica assente no grupo-turma. São sobejamente conhecidos os traços gerais deste modelo: para o conjunto das disciplinas, o grupo de alunos é constituído para o ano inteiro (num processo de escolha em que o aluno não exerce qualquer direito de preferência), encontrando-se todas as semanas, a dias, horas e lugares fixos, perante o professor encarregado de leccionar a respectiva disciplina, no quadro de um programa e de um plano de estudos que se impõem a todos (professor e alunos). Há inúmeras investigações que demonstram a ineficácia deste modelo, sugerindo a implementação de uma nova organização pedagógica, cuja chave constituiria no equilíbrio entre as actividades da turma, do pequeno grupo e do indivíduo, criando-se deste modo o equilíbrio necessário entre a aprendizagem orientada pelo professor e a que é desenvolvida por iniciativa dos alunos. Esta organização orientar-se-ia pelos princípios da pedagogia diferenciada e dos modelos construtivistas da aprendizagem, cujos objectivos assumem que o indivíduo é o centro condutor das acções e actividades realizadas na escola. As TIC, particularmente através do desenvolvimento e integração da Internet nas actividades escolares, permitem corresponder às expectativas deste novo modelo, desde logo, por possibilitarem a adopção de uma nova definição do tempo escolar, tal como é proposta por Schwartz & Polllishuke (1995): flexível para adaptar-se às necessidades dos alunos e flexível para adaptar-se às mudanças da planificação e programação. Trata-se de desescolarizar o tempo e o lugar (sala de aula), retirandos-lhe a dimensão colectiva que actualmente têm: o mesmo tempo e a mesma sala para todos os alunos.

Repercussões em relação aos conteúdos

As repercussões em relação aos conteúdos, compreendem aspectos que vão desde pôr à disponibilidade dos alunos todo o tipo de conhecimentos relacionados com o programa, do acesso a fontes de informação diversificadas, à actualização permanente dos conteúdos através do acesso a bases de dados e ao estabelecimento de uma relação directa com os criadores do conhecimento. Trata-se, como afirma Machado (1995:466) do "pleno acesso ao conhecimento", num novo paradigma de aprendizagem em que aprender "consistirá em saber interagir com as fontes de conhecimento existentes [...] com outros detentores/processadores do Conhecimento (outros professores, outros alunos, outros membros da sociedade)". Nesta linha paradigmática, este autor simula uma situação de ensino-aprendizagem do futuro, mas não tão longínquo como poderíamos supor, em que um professor responde a uma pergunta do seu aluno do seguinte modo: "Eu não te sei responder a essa dúvida, mas julgo que poderás ter algumas pistas no hiperdocumento de Fulano. Porque é que não mandas também uma mensagem a Sicrano, que está a trabalhar nesse mesmo tema, pedindo-lhe a sua opinião?" (idem:466).

No entanto, a ideia do “pleno acesso ao conhecimento” não se pode confundir com “totalidade”. A Web gera de facto um fluxo informativo que não cessa de crescer: reservas de memórias diversificadas (bancos de dados, grandes arquivos, bibliotecas), grupos e indivíduos podem tornar-se emissores e aumentar exponencialmente este fluxo informativo, a que metaforicamente Pierre Lévy chama de segundo dilúvio (Lévy (2000). De facto, quem já utilizou qualquer motor de busca para pesquisar informação sobre um assunto deparou-se de imediato com uma inundação de informações, ficando com a sensação de uma abundância ilimitada, como se acedesse a toda a informação disponível. Não se faça deste fenómeno um mito associado à Internet. Em primeiro lugar, não existe sistema de informação sem erros, perdas, desfasamentos e a Internet também não foge a esta constatação. Em segundo lugar, a abundância informativa sugere, paradoxalmente, que o acesso pleno, o todo, é inacessível. O problema não está no acesso livre e fácil, é de facto uma vantagem, mas em saber o que procurar e como o fazer. O que fazer? Lévy, ao convocar o Dilúvio, utiliza a imagem da arca de Noé. Assim como no meio do caos Noé fez uma selecção dos dados e construiu um mundo bem ordenado na sua arca, também os navegadores da Net devem saber domar o caos informativo, arranjar zonas de familiaridade e construir um sentido para o seu universo comunicacional, aspecto que nos remete para as repercussões metodológicas.

Repercussões metodológicas

Como a actual tecnologia propicia o acesso directo à informação propagandeia-se a ideologia do faça você mesmo, insistindo-se ainda que o pode fazer em just–in-time (qualquer hora e de qualquer lugar). Esta ideologia, usada no seu fundamentalismo extremo, sugere a dispensa da figura da intermediação sempre presente ao longo da história, processo a que o professor também não escapa. No entanto, não obstante os progressos proporcionados pela tecnologia no acesso directo e individualizado à informação, esta perfomance merece ser questionada quando o aspecto crucial trata de gerar do caos informacional um sentido comunicacional, ou seja, transformar informação em saber, aspecto fulcral da comunicação educativa. De que serve ter acesso directo a um banco de dados se não se souber o que fazer com esses dados? A resposta é evidentemente cultural e remete-nos para a complexa questão dos meios cognitivos de que o indivíduo dispõe para reintegrar a informação no seu contexto e para dela se servir (Wolton, 2000:124). Ou seja, a tecnologia torna possível o acesso directo à informação, mas não é possível o acesso directo ao conhecimento. Passar de um conhecimento intuitivo e sumário do senso comum para a um conhecimento reflexivo em que o indivíduo seja capaz de organizar, associar e estabelecer relações com as informações não se alcança com a imediaticidade do directo: requer tempo, muito tempo, calma e paciência para aprender a pensar. Deste modo, começa-se a compreender que a navegação pelos oceanos informáticos requer a intermediação humana, nomeadamente a dos professores como insiste Wolton (idem:124), vincando que a emancipação que a Web proporciona não passa pela supressão dos intermediários, mas antes pelo reconhecimento do seu papel.

Deste modo, a Web deslocou a perspectiva da individualização da aprendizagem, muito em voga nos inícios da era da aplicação da informática e do multimédia no ensino, fazendo emergir uma ideologia técnica que vincava a interacção aluno-máquina sem qualquer outra intermediação, para uma perspectiva de aprendizagem cooperativa, sendo esta a essencial mudança qualitativa mais prometedora que a Web proporciona à educação.

Assim, as principais repercussões em relação à metodologia prendem-se com as possibilidades de se criarem metodologias singulares e variadas, adaptadas ao perfil de cada aluno e aos contextos de aprendizagem. Trata-se de aplicar uma pedagogia diferenciada (Landsheere, 1994:122), valorizando o método, o processo, o itinerário, o como, dando aos professores a possibilidade de ensinarem de outro modo, permitindo pensar um paradigma metodológico que rompa com o modelo de pedagogia uniformizante. Tal paradigma passa pela combinação dos ambientes presenciais com os ambientes a distância, dos ambientes fechados com os ambientes abertos, da ligação das escolas em rede, entre si, e com outras fontes produtoras de informação e do saber. Num sistema em que a tecnologia assegura a difusão a informação, ensinar de outro modo deve significar, necessariamente, ensinar a construir o saber, ensinar a pensar.

Em síntese, a natureza das tecnologias que suportam estas repercussões expandem a complexidade do diálogo da sala de aula, possibilitando quer o acesso e manipulação de fontes exteriores de informação como também a comunicação a distância, o que em termos práticos significa aprendizagem colaborativa e expansão da capacidade de diálogo interpessoal. A envolvência das aplicações multimédia nas redes de comunicação e a combinação da sua flexibilidade com a comunicação virtual levou-nos a designar este novo paradigma educacional por Comunidades Virtuais de Aprendizagem que, devido à utilização que fazemos do termo virtual - uma forma potencial de mediação interfacial que não se opõe ao real - , preferimos designar por Comunidades de Aprendizagem, sem mais adjectivação.