5. Reinventar a sala de aula na cibercultura

 

Marco Silva*

A pedagogia da transmissão agoniza

A sala de aula está cada vez mais sem atrativos e os alunos cada vez mais desinteressados no seu modelo clássico baseado na transmissão de “conhecimentos” para memorização e reprodução. As últimas conclusões do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), do Ministério da Educação, confirmam esse grave problema, que certamente não se restringe ao ensino básico. Sabemos que a pedagogia da transmissão prevalece também na universidade e nos cursos a distância. O próprio Ministério da Educação reconheceu o descompasso entre o modelo tradicional de escola e os recursos informacionais hoje disponíveis no cotidiano dos estudantes. O MEC destacou pelo menos duas explicações para o crescente desinteresse pela sala de aula:

· O professor se sente o todo-poderoso, repete conceitos e não sabe interagir com os alunos; os conteúdos estão distantes da realidade e devem ser decorados e cobrados em provas.

· A oferta atual de informação e conhecimento é cada vez maior e melhor fora da sala de aula, graças aos novos recursos tecnológicos, em especial a internet e a multimídia interativa (cf. Folha de S. Paulo, 29/11/2000).

Com Pierre Lévy (1993), o filósofo da cibercultura, podemos verificar que o crescente desinteresse pela sala de aula é fenômeno mundial. Ele nos lembra que há cinco mil anos a escola está baseada no falar-ditar do mestre. E diz ainda que hoje a principal função do professor não pode mais ser a difusão de conhecimentos que agora é feita de forma mais eficaz pelos novos meios de informação e comunicação. Para esse autor a sala de aula baseada na transmissão, memorização e prestação de contas não tem mais centralidade na cibercultura.

O especialista em educação pela UNESCO Martín-Barbero (2000) também está atento aos desafios do nosso tempo cibercultural à velha sala de aula. Ele diz que os professores só sabem raciocinar na transmissão linear separando emissão e recepção. E alerta para o fato de que aumenta o hiato entre a experiência cultural de onde falam os professores e aquela outra de onde aprendem os alunos.

De fato, a obsolescência do modelo tradicional de ensino escolar vem se agravando na cibercultura. Na sala de aula presencial do ensino básico e da universidade prevalece a centralidade do mestre, responsável pela produção e pela transmissão do conhecimento. Na educação a distância via internet, os sites educacionais, os ambientes virtuais de aprendizagem continuam estáticos, ainda centrados na transmissão de dados, desprovidos de mecanismos de participação, de criação coletiva, de aprendizagem construída. Ou seja, também na educação on-line o paradigma permanece o mesmo do ensino presencial tradicional: o professor-tutor-conteudista é o responsável pela produção e pela transmissão do conhecimento. As pessoas permanecem como recipientes de informação. A educação continua a ser, mesmo na tela do computador conectado à internet, repetição burocrática ou transmissão unidirecional de conteúdos empacotados.

Os alunos, cada vez mais imersos na cibercultura, estarão exigindo uma nova ambiência de aprendizagem. Eles passam a integrar a chamada "geração digital" e estão cada vez menos passivos perante a mensagem fechada à intervenção. Eles aprenderam com o controle remoto da TV, com o joystick do videogame e agora aprendem com o mouse. Assim eles migram da tela estática da TV para a tela do computador conectado à internet. Estão mais conscientes das tentativas de programá-los e são mais capazes de se esquivar dessa programação. Evitam acompanhar argumentos lineares que não permitem a sua interferência e lidam facilmente com a linguagem digital. Aprendem que deles depende o gesto instaurador que cria e alimenta a sua experiência comunicacional: interferir, modificar, produzir, partilhar. Essa atitude menos passiva diante da mensagem é sua exigência de uma nova sala de aula. Seja na educação presencial, seja na educação a distância.

Então é preciso reconhecer: até aqui tínhamos os apelos de mestres valorosos como Paulo Freire, Vygotsky e tantos outros, enfatizando participação colaborativa, dialógica e multidisciplinaridade como fundamentos da educação, da aprendizagem; hoje temos também o apelo da cibercultura questionando oportunamente a velha pedagogia da transmissão. Doravante os programas de formação de professores precisarão enfocar questionamentos inadiáveis. Exemplos: que é cibercultura? Por que a cibercultura convoca o professor a reinventar sua sala de aula? Como situar participação colaborativa, dialógica e multidisciplinaridade na sala de aula, garantindo a formação cidadã no contexto cibercultural? Como lançar mão do que há de oportuno em cibercultura para favorecer o salto de qualidade necessário em educação? Qual será a principal função do professor na cibercultura, uma vez o falar-ditar do mestre passa a não ter mais centralidade? A seqüência deste texto busca contribuir para o tratamento dessas questões.

A cibercultura como novo desafio à educação

Cibercultura é o conjunto de técnicas, de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento da internet como novo meio de comunicação que surge com a interconexão mundial de computadores. Para Lévy (1999), cibercultura é o principal canal de comunicação e suporte de memória da humanidade a partir do início do século 21; é o novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de organização e transação da informação e do conhecimento.

Há um rompimento paradigmático com o reinado da mídia clássica baseada na transmissão em massa. Enquanto esta efetua a distribuição para o receptor massificado, a cibercultura, fundada na codificação digital, permite ao indivíduo a comunicação personalizada, operativa e colaborativa em rede multidisciplinar.

A cibercultura emerge com a passagem do computador pessoal (PC) para o computador coletivo (CC), isto é, conectado à internet. O pesquisador da cibercultura André Lemos (2002) vê aqui a passagem do computador apolíneo, individualista e austero ao computador dionisíaco, coletivo, efervescente, multiconectado em rede on-line ou ciberespaço.

O computador conectado e a internet criam a nova ambiência informacional e dão o tom da nova lógica comunicacional, que toma o lugar da distribuição em massa própria da fábrica, da escola e da mídia clássica (rádio, imprensa e TV), até então símbolos societários. Na cibercultura a produção para a massa cede espaço à produção operacionalizada em redes multidisciplinares definidas por comunidades de interesses.

A sociedade pode se dar conta dessa transição à medida que experimenta a diferença entre a tela da tv e a tela do computador on-line. A TV, máquina rígida, restritiva, centralizadora tem na tela um espaço de irradiação, de transmissão. Já o computador tem a tela operativa ou interativa, permitindo algo mais que a mera recepção. Isso significa dizer que estamos passando do esquema “um-todos”, às redes interagentes que se configuram como “todos-todos” e como “faça-você-mesmo”.

As conseqüências socioculturais que emergem com a cibercultura compõem um cenário muito novo, com implicações bombásticas para a educação e para a mídia de massa. Por sua vez, os produtores de TV já perceberam o novo perfil dos espectadores e procuram investir em programações que permitam a eles não apenas a experiência audiovisual, mas também participativa, operativa. Os reality shows são tentativas ainda precárias de participação do público na TV. Na verdade, disputam o público que migra para a internet e, ao mesmo tempo, produzem know-how para a TV digital, que virá fundir-se com a internet. Já os professores, estes ainda se encontram em sua maioria excluídos da cibercultura por não terem em casa ou na escola o computador on-line. Assim, não têm chance de superação de resistências em assumir a tecnologia digital, de aprender com a cibercultura.

O que os professores podem aprender com a cibercultura?

Distanciados da cibercultura, os professores não se dão conta da mudança paradigmática em informação e comunicação que opera em nosso tempo. Em síntese, eles perdem ou retardam a urgente percepção de modificações decisivas na informática, na esfera social e no cenário das comunicações:

· Mudança na tecnologia informática. A tela do computador não é espaço de irradiação, mas ambiente de adentramento e manipulação, com janelas móveis e abertas a múltiplas conexões. As herméticas linguagens alfanuméricas são substituídas pelos ícones e janelas móveis que permitem interferências e modificações na tela. O computador desconectado projetado para o indivíduo cartesiano, solipsista deu lugar ao computador comunitário, associativo, cooperativo.

· Mudança na esfera social. Há um novo espectador menos passivo diante da mensagem mais aberta à sua intervenção. Ele aprendeu com o controle remoto da tv, com o joystick do videogame e agora aprende como o mouse. Essa mudança significa emergência de um novo leitor. Não mais aquele que segue as páginas do livro de modo unitário e contínuo, mas aquele que salta de um ponto a outro fazendo seu próprio roteiro de leitura multidisciplinar. Não mais aquele paciente que submete-se às récitas da emissão, mas aquele que, não identificando-se apenas como receptor, interfere, manipula, modifica e assim, reinventa mensagem. Sinal dessa mudança são os games em rede online. Seus roteiros estarão cada vez mais abertos depositando nas mãos dos jogadores a capacidade de criar, de administrar sua própria aventura.

· Mudança no cenário comunicacional. Ocorre a transição da lógica da distribuição (transmissão) para a lógica da comunicação (interatividade). Isso significa modificação radical no esquema clássico da informação baseado na ligação unilateral emissor-mensagem-receptor. O emissor não emite mais no sentido que se entende habitualmente, uma mensagem fechada, ele oferece um leque de elementos e possibilidades à manipulação do receptor. A mensagem não é mais "emitida", não é mais um mundo fechado, paralisado, imutável, intocável, sagrado, ela é um mundo aberto, modificável na medida em que responde às solicitações daquele que a consulta. O receptor não está mais em posição de recepção clássica, ele é convidado à livre criação, e a mensagem ganha sentido sob sua intervenção.

Toda essa mudança quer dizer cibercultura. É preciso despertar o interesse dos professores para essa nova realidade e a partir daí, para a construção de um nova comunicação com os alunos em sala de aula presencial e a distância. É preciso enfrentar o fato de que tanto a mídia de massa quanto a sala de aula estão diante do esgotamento do mesmo modelo comunicacional que separa emissão e recepção. O produtor de tv percebeu que não se pode dar às pessoas somente coisas para ver e ouvir, mas para interagir. O professor pode superar a defasagem a medida que perceber que seus alunos não estão mais no contexto da audiência de massa, mas da audiência interativa. A medida que for assumindo tudo isso ele poderá recriar sua autoria em sala de aula. Jamais perder de vista os ensinamentos dos valorosos educadores. Mas buscar na cibercultura o ambiente mais favorável à ressignificação de sua prática docente comprometida com a educação cidadã.

Reinventar a sala de aula na cibercultura

Desde o Iluminismo que a escola é colocada como o lugar privilegiado para a formação da cidadania. O grande paradoxo aqui é o modelo de sala de aula baseado no falar-ditar do mestre iluminado e no silêncio nem sempre passivo do a-luno (sem luz). Ressignificar a educação na cibercultura significa superar esse paradoxo. O professor poderá modificar sua atuação em sala de aula investindo em pelo menos três fundamentos inarredáveis em educação:

¨ Participação coletiva. Comunicar supõe participar. Participar não é apenas responder "sim" ou "não" ou escolher um opção dada, significa interferir, modificar a mensagem. Participação coletiva quer dizer interação colaborativa, co-criação. Aprender supõe participação ativa na construção do conhecimento.

¨ Dialógica. A comunicação é produção conjunta da emissão e da recepção. É co-criação, os dois pólos codificam e decodificam. Assim “A” modifica “B” e “B” modifica “A”. Por isso Paulo Freire (1978) diz: a educação autêntica não se faz de “A” para “B’’ ou “A” sobre “B”, mas de “A” com “B”.

¨ Multidisciplinaridade. A comunicação supõe múltiplas redes articulatórias de conexões e liberdade de trocas, associações e significações. O professor não transmite, ele propõe o conhecimento oferecendo múltiplas informações (em imagens, sons, textos, etc.) Ele oferece múltiplos enfoques disciplinares convocando seus alunos ao trânsito livre, associativo, criativo capaz de gerar novas sínteses entre as disciplinas (inter) e para além das disciplinas (trans).

A par da cibercultura, de suas implicações e possibilidades, o professor estará tentado a ser mais que instrutor, treinador, parceiro, conselheiro, guia, facilitador, colaborador. Ele procurará ser um formulador de problemas, provocador de situações, arquiteto de percursos, mobilizador das inteligências múltiplas e coletivas na experiência do conhecimento. Ele disponibilizará estados potenciais do conhecimento de modo que o aluno experimente a aprendizagem quando participa, dialoga e associa. Por sua vez, o aluno deixa o lugar da recepção passiva de onde ouve, olha, copia e presta contas para se envolver com a proposição do professor e, oxalá, com a reinvenção da sala de aula, da educação e, de resto, do nosso tempo.

Bibliografia

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

LEMOS, André. Cultura das redes. Ciberensaios para o século XXI. Salvador, EDUFBA, 2002.

LÉVY, Pierre. Cibercultura . Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora, 34, 1999.

___________. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora, 34, 1993.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. “Novos regimes de visualidade e descentramentos culturais”, in Batuques, fragmentações e fluxos: zapeando pela linguagem audiovisual escolar. V. Filé (org.), Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

RAMAL, Andrea C. Educação na cibercultura: hipertextualidade, leitura, escrita e aprendizagem. Porto Alegre: Artimed, 2002.

SILVA, Marco. Sala de aula interativa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Quartet, 2006.

TAPSCOTT, Don. Geração digital: a crescente e irredutível ascensão da geração net. Trad. Ruth Bahr. São Paulo: MAKRON Books, 1999.

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* Este texto é um trecho do artigo "De Anísio Teixeira à cibercultura: desafios para a formação de professores ontem, hoje e amanhã". Clique aqui para ler o texto na íntegra.

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