O pensamento de Bento Silva
Neste Livro Bento Silva, docente do PPGE da Universidade do Minho de Portugal, apresenta sua inquietação neste Módulo 1. Mais do que apresentar suas abordagens, sua reflexão amadurecia em suas pesquisas, neste Livro quer motivar o debate sobre educação e cibercultura. Sua principal indagação é: "
"assim como a tecnologia da escrita deu origem ao aparecimento da escola, as actuais Tecnologias da Informação e Comunicação contêm potencial para renovar a escola? Quais são as características dessas tecnologias e quais são as repercussões organizacionais e curriculares que proporcionam?"
Na nossa opinião, as tecnologias da informação e da comunicação por si só não possuem potencial para renovar a escola. Sem dúvida essas exercem papel essencial na emergência das redes digitais na sociedade global, desinstalando velhas qualificações, criando novos perfis profissionais, gerando habilidades e competências que trazem novas exigências para a inserção dos indivíduos na sociedade e conseqüentemente mais desafios para as escolas. O avanço tecnológico aponta para alterações nos processos comunicacionais e educacionais de aprendizagem e para a ampliação e inserção da cultura tecnológica nas práticas pedagógicas. Neste novo cenário onde as TICs definem as relações produtivas, as escolas devem rever seus conceitos e procurar formar adequadamente os seus profissionais docentes pois o importante para a escola não deve ser apenas o acesso dos alunos às informações, mas a sua participação na produção e apropriação dos valores que as tecnologias agregam.Novas formas de gestão e organização curricular são indispensáveis para enfrentar os desafios atuais
Repercussões das TIC na organização escolar e curricular
Na linha da relação entre as tecnologias e as estruturas educativas, há quem advoge uma transformação radical propondo o fim da escola e a sua substituição por um novo “sistema inteligente” de aprendizagem denominado "hiperaprendizagem", baseado na extraordinária velocidade e alcance da nova tecnologia, e no imprecedente grau de conexidade entre conhecimento, experiência, hipermédia e inteligências (humanas e não humanas) para transformar o conhecimento e o comportamento através da experiência (Perelman, 1992). Já se questionou noutra ocasião esta posição, denominada de tecnólatra (Silva, 1999), visto que na sua defesa, não obstante a justeza de algumas críticas que o autor atribui à escola, não se vislumbram razões de ordem social, cultural ou pedagógica. A principal razão invocada é de ordem económica, defendendo-se a comercialização da educação como forma de conseguir o lucro necessário para accionar a inovação tecnológica.
Pensamos que a ideia de escola como memória da humanidade, como sistema de construção do saber, de enriquecimento moral e social, um espaço em que se considere cada aluno como um ser humano à procura de si próprio, em reflexão conjunta com os demais e com o mundo que o rodeia, tem ainda razão de existir neste início de um novo milénio. Precisa, sim, é de ser profundamente renovada e as actuais TIC contêm os ingredientes necessários para favorecer essa mudança.
Situamos as principais repercussões provocadas pela integração das TIC ao nível da organização, na relação com os conteúdos e na metodologia.
Repercussões organizativas
As repercussões organizativas compreendem os aspectos relacionados com a questão da centralização/descentralização, da flexibilidade do tempo e do espaço escolares e da adaptação curricular.
Na questão da centralização/descentralização trata-se de considerar as vias de tomada de decisão entre os vários níveis do sistema (macro, meso e micro), tanto no domínio da administração, da construção e desenvolvimento do currículo, como no da investigação e formação. Ribeiro Gonçalves (1992:96) identifica a presença de três vias clássicas: i) a central-periférica, definida de cima para baixo, principalmente através de decretos e leis; ii) a periférica-central, pelas propostas que as escolas e os professores fazem chegar à instância superior, mas que, dada a atomização, são filtradas e ficam descontextualizadas; iii) a periférica-periférica, pelas experiências que professores isolados realizam, mas não têm possibilidade de difundir e alargar. Equacionado as vantagens e desvantagens de cada via, o autor propõe a criação de uma via colaborativa através do estabelecimento de redes interescolas, intralocalidades e interlocalidades. Ora, os ingredientes constitutivos das TIC vêm precisamente ao encontro da construção desta via colaborativa, possibilitando a criação de uma rede eficaz de comunicação entre as escolas e com outros espaços extra-escolares, abrindo-as ao exterior e à associação em territórios educativos, independentemente de factores geográficos e domínios institucionais.
A contribuição para a gestão/flexibilização do tempo e do espaço escolares e para a adaptação curricular passa pela possibilidade em se estabelecer uma comunicação permanente entre os conteúdos a aprender e os alunos, a qualquer hora e desde qualquer ponto da rede, permitindo também que o professor faça as alterações necessárias ao seu programa, ajuste os conteúdos e o seu modo de apresentação às características e necessidades dos alunos.
Trata-se, no fundo, de efectuar transformações no vigente modelo de organização pedagógica assente no grupo-turma. São sobejamente conhecidos os traços gerais deste modelo: para o conjunto das disciplinas, o grupo de alunos é constituído para o ano inteiro (num processo de escolha em que o aluno não exerce qualquer direito de preferência), encontrando-se todas as semanas, a dias, horas e lugares fixos, perante o professor encarregado de leccionar a respectiva disciplina, no quadro de um programa e de um plano de estudos que se impõem a todos (professor e alunos). Há inúmeras investigações que demonstram a ineficácia deste modelo, sugerindo a implementação de uma nova organização pedagógica, cuja chave constituiria no equilíbrio entre as actividades da turma, do pequeno grupo e do indivíduo, criando-se deste modo o equilíbrio necessário entre a aprendizagem orientada pelo professor e a que é desenvolvida por iniciativa dos alunos. Esta organização orientar-se-ia pelos princípios da pedagogia diferenciada e dos modelos construtivistas da aprendizagem, cujos objectivos assumem que o indivíduo é o centro condutor das acções e actividades realizadas na escola. As TIC, particularmente através do desenvolvimento e integração da Internet nas actividades escolares, permitem corresponder às expectativas deste novo modelo, desde logo, por possibilitarem a adopção de uma nova definição do tempo escolar, tal como é proposta por Schwartz & Polllishuke (1995): flexível para adaptar-se às necessidades dos alunos e flexível para adaptar-se às mudanças da planificação e programação. Trata-se de desescolarizar o tempo e o lugar (sala de aula), retirandos-lhe a dimensão colectiva que actualmente têm: o mesmo tempo e a mesma sala para todos os alunos.
Repercussões em relação aos conteúdos
As repercussões em relação aos conteúdos, compreendem aspectos que vão desde pôr à disponibilidade dos alunos todo o tipo de conhecimentos relacionados com o programa, do acesso a fontes de informação diversificadas, à actualização permanente dos conteúdos através do acesso a bases de dados e ao estabelecimento de uma relação directa com os criadores do conhecimento. Trata-se, como afirma Machado (1995:466) do "pleno acesso ao conhecimento", num novo paradigma de aprendizagem em que aprender "consistirá em saber interagir com as fontes de conhecimento existentes [...] com outros detentores/processadores do Conhecimento (outros professores, outros alunos, outros membros da sociedade)". Nesta linha paradigmática, este autor simula uma situação de ensino-aprendizagem do futuro, mas não tão longínquo como poderíamos supor, em que um professor responde a uma pergunta do seu aluno do seguinte modo: "Eu não te sei responder a essa dúvida, mas julgo que poderás ter algumas pistas no hiperdocumento de Fulano. Porque é que não mandas também uma mensagem a Sicrano, que está a trabalhar nesse mesmo tema, pedindo-lhe a sua opinião?" (idem:466).
No entanto, a ideia do “pleno acesso ao conhecimento” não se pode confundir com “totalidade”. A Web gera de facto um fluxo informativo que não cessa de crescer: reservas de memórias diversificadas (bancos de dados, grandes arquivos, bibliotecas), grupos e indivíduos podem tornar-se emissores e aumentar exponencialmente este fluxo informativo, a que metaforicamente Pierre Lévy chama de segundo dilúvio (Lévy (2000). De facto, quem já utilizou qualquer motor de busca para pesquisar informação sobre um assunto deparou-se de imediato com uma inundação de informações, ficando com a sensação de uma abundância ilimitada, como se acedesse a toda a informação disponível. Não se faça deste fenómeno um mito associado à Internet. Em primeiro lugar, não existe sistema de informação sem erros, perdas, desfasamentos e a Internet também não foge a esta constatação. Em segundo lugar, a abundância informativa sugere, paradoxalmente, que o acesso pleno, o todo, é inacessível. O problema não está no acesso livre e fácil, é de facto uma vantagem, mas em saber o que procurar e como o fazer. O que fazer? Lévy, ao convocar o Dilúvio, utiliza a imagem da arca de Noé. Assim como no meio do caos Noé fez uma selecção dos dados e construiu um mundo bem ordenado na sua arca, também os navegadores da Net devem saber domar o caos informativo, arranjar zonas de familiaridade e construir um sentido para o seu universo comunicacional, aspecto que nos remete para as repercussões metodológicas.
Repercussões metodológicas
Como a actual tecnologia propicia o acesso directo à informação propagandeia-se a ideologia do faça você mesmo, insistindo-se ainda que o pode fazer em just–in-time (qualquer hora e de qualquer lugar). Esta ideologia, usada no seu fundamentalismo extremo, sugere a dispensa da figura da intermediação sempre presente ao longo da história, processo a que o professor também não escapa. No entanto, não obstante os progressos proporcionados pela tecnologia no acesso directo e individualizado à informação, esta perfomance merece ser questionada quando o aspecto crucial trata de gerar do caos informacional um sentido comunicacional, ou seja, transformar informação em saber, aspecto fulcral da comunicação educativa. De que serve ter acesso directo a um banco de dados se não se souber o que fazer com esses dados? A resposta é evidentemente cultural e remete-nos para a complexa questão dos meios cognitivos de que o indivíduo dispõe para reintegrar a informação no seu contexto e para dela se servir (Wolton, 2000:124). Ou seja, a tecnologia torna possível o acesso directo à informação, mas não é possível o acesso directo ao conhecimento. Passar de um conhecimento intuitivo e sumário do senso comum para a um conhecimento reflexivo em que o indivíduo seja capaz de organizar, associar e estabelecer relações com as informações não se alcança com a imediaticidade do directo: requer tempo, muito tempo, calma e paciência para aprender a pensar. Deste modo, começa-se a compreender que a navegação pelos oceanos informáticos requer a intermediação humana, nomeadamente a dos professores como insiste Wolton (idem:124), vincando que a emancipação que a Web proporciona não passa pela supressão dos intermediários, mas antes pelo reconhecimento do seu papel.
Deste modo, a Web deslocou a perspectiva da individualização da aprendizagem, muito em voga nos inícios da era da aplicação da informática e do multimédia no ensino, fazendo emergir uma ideologia técnica que vincava a interacção aluno-máquina sem qualquer outra intermediação, para uma perspectiva de aprendizagem cooperativa, sendo esta a essencial mudança qualitativa mais prometedora que a Web proporciona à educação.
Assim, as principais repercussões em relação à metodologia prendem-se com as possibilidades de se criarem metodologias singulares e variadas, adaptadas ao perfil de cada aluno e aos contextos de aprendizagem. Trata-se de aplicar uma pedagogia diferenciada (Landsheere, 1994:122), valorizando o método, o processo, o itinerário, o como, dando aos professores a possibilidade de ensinarem de outro modo, permitindo pensar um paradigma metodológico que rompa com o modelo de pedagogia uniformizante. Tal paradigma passa pela combinação dos ambientes presenciais com os ambientes a distância, dos ambientes fechados com os ambientes abertos, da ligação das escolas em rede, entre si, e com outras fontes produtoras de informação e do saber. Num sistema em que a tecnologia assegura a difusão a informação, ensinar de outro modo deve significar, necessariamente, ensinar a construir o saber, ensinar a pensar.
Em síntese, a natureza das tecnologias que suportam estas repercussões expandem a complexidade do diálogo da sala de aula, possibilitando quer o acesso e manipulação de fontes exteriores de informação como também a comunicação a distância, o que em termos práticos significa aprendizagem colaborativa e expansão da capacidade de diálogo interpessoal. A envolvência das aplicações multimédia nas redes de comunicação e a combinação da sua flexibilidade com a comunicação virtual levou-nos a designar este novo paradigma educacional por Comunidades Virtuais de Aprendizagem que, devido à utilização que fazemos do termo virtual - uma forma potencial de mediação interfacial que não se opõe ao real - , preferimos designar por Comunidades de Aprendizagem, sem mais adjectivação.