O pensamento de Bento Silva

Neste Livro Bento Silva, docente do PPGE da Universidade do Minho de Portugal, apresenta sua inquietação. Mais do que apresentar suas abordagens, sua reflexão amadurecia em suas pesquisas vem motivar o debate sobre educação e cibercultura. Sua principal indagação aqui é: 

"assim como a tecnologia da escrita deu origem ao aparecimento da escola, as actuais Tecnologias da Informação e Comunicação contêm potencial para renovar a escola? Quais são as características dessas tecnologias e quais são as repercussões organizacionais e curriculares que proporcionam?"

 As Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) não são apenas meros instrumentos que possibilitam a emissão/recepção deste ou daquele conteúdo de conhecimento, mas também contribuem fortemente para condicionar e estruturar a ecologia cognitiva e organizacional das sociedades. Cada época histórica e cada tipo de sociedade possui uma determinada configuração que lhe é devida e proporcionada pelo estado das suas TIC, reordenando de um modo particular as relações espaço-temporais, nas suas diversas escalas (local, regional, nacional, global) que o homem manteve e mantém com o mundo, e estimulando e provocando transformações noutros níveis do sistema sociocultural (educativo, económico, político, social, religioso, cultural, etc.). Assim foi desde a utilização das tecnologias primitivas. Silva (2000), ao analisar os diversos desenvolvimentos das TIC ao longo do processo civilizatório, desde o homo loquens/pictor ao homo digital, observa a ocorrência de cinco configurações comunicativas (interpessoal, elite, massa, individual e ambiente virtual) e as suas repercussões nas transformações das estruturas educativas (família, escola, escola paralela, auto-educação e comunidades de aprendizagem). Cada ambiente tecnológico favoreceu o aparecimento de certos actores e de processos de aquisição/exploração do saber e da aprendizagem. Importa sublinhar que a passagem de uma configuração a outra não se dá por um mero processo de substituição, mas de forma cumulativa, com rupturas e continuidades, em que cada nova fase de evolução condiciona a anterior a um nível de especialização, orientando-a para uma função determinada e intervenção específica (Mattelart, 1996).

Historicamente, a escola aparece ligada ao progressivo uso da linguagem escrita e expande-se para facilitar a transmissão dos conteúdos requeridos pela crescente complexidade das sociedades (Faure,1972). A escrita representa uma tecnologia da palavra, necessita para a sua aprendizagem de um local, preparação, instrumentos, suportes adequados, tintas, etc., baseada na desigualdade dos comunicadores e na dicotomia entre os que sabem expressar-se por este meio e os que não sabem. Transforma num assunto de especialistas o que dantes era adquirido de forma não formal, na relação que se estabelecia naturalmente no seio da vida familiar (entre os pais e os filhos) e da tribo (entre os velhos e os jovens). Daí a correspondência do aparecimento da escola com a configuração comunicativa de elite. O próprio termo "escola", como esclarece Ribeiro Dias (1979) ao reflectir sobre a Evolução do conceito de Educação, deriva do conceito grego de ócio (scholé), significando que só aqueles que dispõem de tempo livre (de ócio) é que terão possibilidade de dedicar-se às actividades intelectuais e à aprendizagem da expressão cultural pela escrita. Institui-se, assim, uma cultura e educação de base elitista, expressa em diversas dualidades: o intelectual e o manual, o sábio e o ignorante, o mestre e o aprendiz.

A sociedade moderna construiu uma escola imbuída nesta concepção elitista, incorporando os seus traços mais intrínsecos: o formalismo, o intelectualismo e o enciclopedismo. Perante tal cenário, não são de estranhar as inúmeras contestações que tanto abalaram a educação escolar, sentidas com particular incidência no final da década de 60 e na década de 70. Os tempos sociais eram de mudança, de “choque”, como apelidou Toffler (1970). Os relatórios realizados sobre os auspícios da Unesco e da Fundação Europeia da Cultura - Apprendre à Être (Faure et al. 1972); L’éducation créatrice (Fragnière, 1975) - analisaram profusamente esta contestação social e traçaram perspectivas que visavam a renovação do sistema educativo e da escola, nomeadamente através de novas noções fundamentais, como a educação permanente e a construção da cidade educativa. Ao analisar toda esta problemática, Ribeiro Dias (1979:16) afirmava peremptoriamente: “a escola terá de mudar, sob a ameaça de desaparecer”. No entanto, de uma forma geral, os problemas permaneceram: a escola não foi capaz de criar ambientes de aprendizagem estimulantes, não foi capaz de se assumir como organização aberta, não foi capaz de responder aos desafios de heterogeneidade e de diversidade que fazem parte integrante da vida. Em finais da década de 90, em relatório elaborado sob a coordenação de Jacques Delors, a Unesco reconhece o potencial educativo das TIC para transformar a Escola numa Sociedade Educativa, preconizando que “os sistemas educativos devem dar resposta aos múltiplos desafios das sociedades da informação, nas perspectivas dum enriquecimento contínuo dos saberes e do exercício duma cidadania adequada às exigências do nosso tempo” (Delors, 1996:59).

A questão que se levanta e que constitui o cerne de reflexão neste texto, é a seguinte: assim como a tecnologia da escrita deu origem ao aparecimento da escola, as actuais Tecnologias da Informação e Comunicação contêm potencial para renovar a escola? Quais são as características dessas tecnologias e quais são as repercussões organizacionais e curriculares que proporcionam?

Antes, porém, para evitar qualquer mal entendido, não se pretende estabelecer qualquer relação de tipo determinista - os fenómenos são complexos e inter-relacionados - nem reduzimos a capacidade comunicativa ao uso de qualquer perfomance tecnológica. Na linha de Habermas (1987), fazemos uma distinção muito nítida entre acção instrumental e acção comunicativa. Valorizamos esta pela envolvência do acto de criação do sujeito e da construção pelos diversos participantes do sentido de significação comunicacional. Mas, por outro lado, também não vemos que haja motivo válido para a oposição que por vezes se levanta, com particular incidência no campo educativo, entre tecnologia e humanismo. Desde logo, porque não se pode confundir a tecnologia com as realizações materiais que ela produz: a tecnologia é um processo desenvolvido pelo próprio homem, logo, antes de se traduzir em recurso material, passa por ser um recurso humano. Daí que vejamos a tecnologia e a educação como dois processos imbricados ao serviço do desenvolvimento do ser humano e concordemos com Sarramona (1986:9) quando afirma que se educar é fazer o homem, a tecnologia propõe-se fazê-lo cada vez melhor.