Fonte: http://www.ejrworldlearning.com.br/ [20/02/03] (pesquisa realizada em março/2003)


A Bolsa de Conhecimentos

Rogério da Costa

Desde 1992 venho trabalhando com a relação entre tecnologias da informação e a produção de conhecimentos. Foi pesquisando e implantando o software Gingo (a versão atualizada desse software é denominada SEE-K, disponível junto ao representante brasileiro em http://www.ddic.com.br ), que gera o ambiente computacional denominado “Árvores de Conhecimentos”, criado por Pierre Lévy e Michel Authier, que fui levado a refletir sobre o papel que as tecnologias poderiam ter na aprendizagem, e isso tanto no domínio educacional quanto no corporativo. A metodologia e a filosofia das Árvores me ajudaram a construir uma visão bem diferente daquela que orienta, ainda hoje, o sistema educacional de uma forma geral. Refiro-me aqui, por exemplo, à idéia básica de sequencialidade obrigatória para certas disciplinas, à noção de avaliação, aos processos atuais de validação dos conhecimentos, entre outros aspectos. Na verdade, a filosofia que alimenta o projeto das Árvores aponta para um horizonte bem diferente daquele com o qual estamos habituados ou no qual fomos nós próprios educados.

Authier e Lévy, já nessa época, propunham uma visão da aprendizagem a partir de coletivos em profunda sinergia, onde os indivíduos conseguiriam interagir e trocar conhecimentos e competências entre si, o professor assumindo ali a figura do mediador ou do orientador. O grande desafio das Árvores sempre foi o de permitir que aqueles que constituem um pequeno grupo, uma turma escolar ou mesmo toda uma população, uma classe profissional etc, pudessem estabelecer sinergia a ponto de manterem entre si um nível de troca de conhecimentos satisfatório. A isso chamaram Inteligência Coletiva. Todos sabemos, no entanto, que alimentar um processo como esse não é nada evidente, pois não é óbvio que as pessoas estarão dispostas a trocar conhecimentos em qualquer situação.

Os Benefícios

Por esse motivo, segundo a metodologia das Árvores, a primeira coisa a ser feita em qualquer projeto dessa natureza é estabelecer com clareza qual benefício cada indivíduo poderia obter como resultado de sua ação específica, a troca de conhecimentos. A título comparativo, podemos lembrar aqui dos jogos coletivos (como o futebol, vôlei, basquete...), que dependem inteiramente das ações individuais para existirem. O espaço do jogo, nesses casos, é um espaço comum, mas que recebe ações individuais. Nele só há sentido em alguém começar a jogar se os outros também jogarem! Com isso, é possível perceber a importância para o coletivo de cada ação singular, mas é igualmente claro que cada uma dessas ações foi executada tendo em vista um benefício próprio. Ser titular, ser artilheiro, ser patrocinado por alguma empresa são exemplos conhecidos de benefícios individuais que podem ser obtidos pelos que participam de atividades esportivas coletivas. Desse modo, podemos entender que cada ação individual foi direcionada para o coletivo, mas seus resultados foram duplos: houve benefício para o indivíduo e, simultaneamente, para o próprio coletivo (como por exemplo a vitória do time na competição, novos contratos de publicidade, o reconhecimento popular...).

No fundo, o que a metodologia das Árvores pretende é fugir tanto do estímulo ao individualismo, onde as ações são pouco cooperativas, quanto do apelo ao simples voluntarismo, que depende sempre, em algum nível, da capacidade de renúncia dos indivíduos. Sendo assim, uma ação individual que beneficie o coletivo, mas que traga, para o indivíduo que é seu autor, benefícios igualmente claros, tem mais chances de ser reforçada do que ações voluntárias ou promovidas por instituições (estas últimas sujeitas a problemas políticos e orçamentários).
O sistema educacional clássico, como se sabe, é mestre em deslocar a idéia de benefício para o futuro, lá onde o aluno já estará esgotado! É apenas ao final e ao cabo de tantas tarefas e sacrifícios que será possível receber uma recompensa, em geral na forma de um diploma. As Árvores, ao contrário, propuseram desde o início uma metodologia que favorecesse a emergência de coletivos inteligentes, acreditando que a circulação de conhecimentos pode ser vista por cada um como benefício constante, tanto pessoal quanto coletivo.

A avaliação

Um segundo aspecto primordial da metodologia das Árvores diz respeito ao problema da avaliação. Quando pensamos numa avaliação do tipo prova ou teste, o que estamos querendo avaliar exatamente? Uma resposta convencional seria: que um indivíduo tenha assimilado um certo conhecimento. Mas para que serviria exatamente esse tipo de avaliação? Aqui podemos pensar em pelo menos três aspectos. O primeiro é certificar alguém para que possa exercer na sociedade algum tipo de atividade, sem que isso implique em riscos para outros indivíduos. O segundo é capacitar alguém para competir no mercado de trabalho e, ainda um terceiro aspecto, permitir que alguém possa avançar na aprendizagem (caso da idéia de pré-requisito).

Ora, para além dessa simples constatação, não haveria outra forma de avaliação, que levasse em conta não apenas o exame de conhecimentos isoladamente, mas que pudesse incluir seu viés de valor? Na prática, sabemos que os conhecimentos possuem valores diferentes e que isso se deve aos contextos diversos em que são aplicados. Mais ainda, sabemos que eles não são exercidos de forma isolada, já que se encontram profundamente interconectados a outros saberes, habilidades e aspectos afetivos e sociais em cada indivíduo. E é justamente esse processo constante de interconexão, que depende da densidade e frequência com que são associados pelas pessoas, o que acaba por lhes conferir valores diferentes. Todos os nossos saberes, hoje, estão entrelaçados em redes absolutamente fluidas, que variam segundo o grau de inovação da sociedade e dos interesses individuais.

É nesse sentido que a avaliação tradicional precisaria ser inovada. Ela poderia incluir tanto o valor que os saberes assumem nessa interação reticular, quanto o perfil de quem é avaliado. De fato, ao se avaliar uma aprendizagem de forma isolada, acaba-se por não se levar em conta, de um lado, o valor de conexão do que está sendo avaliado, sua intrincada rede de origem e influência. Por outro lado, sem o perfil de quem está sendo avaliado, é difícil saber ao certo que valor pode ter para ele aquilo que aprendeu. Isso significa que há os que são avaliados sobre conhecimentos que, no final das contas, pouco podem contribuir em termos estratégicos para o seu perfil. Ou ainda, muitos podem estar sendo avaliados sem saber ao certo qual o valor do que aprenderam para sua carreira.

Quando se consegue perceber o valor que uma aprendizagem tem ou pode vir a ter, há então uma percepção mais clara dos benefícios que o trabalho a ser empregado para adquiri-la ou produzi-la trará. É isso que move os interesses, as ações e interações das pessoas, mais do que a idéia de acumulação de saberes sem contexto preciso. Numa palavra: é isso que desperta em alguém o real “desejo de aprender”.

Ora, estamos justamente vivendo um momento histórico onde é visível que os conhecimentos brotam diariamente, de todos os cantos. Eles são produzidos hoje nos mais diferentes ambientes, incluindo instituições culturais e financeiras, empresas, ONGs etc., além dos lugares tradicionais, como universidades e centros de pesquisa. Isso significa que a rede que entrelaça os saberes está cada vez mais complexa, o que torna mais difícil a tarefa de avaliação rotineira que as instituições de ensino devem executar. Seria preciso ter em mãos um mapeamento dinâmico, produzido pelo próprio social, e portanto para além dos muros das instituições, que nos orientasse constantemente sobre as mudanças em curso.

A Bolsa de conhecimentos

Já em 1992, tanto Authier quanto Lévy mencionavam a hipótese de uma futura bolsa de conhecimentos, onde os indivíduos depositariam seu perfil pessoal, composto pelos mais diversos tipos de saberes, que seriam valorados por oferta e demanda da comunidade, constituindo-se assim como referência para o capital intelectual (expressão que, não esqueçamos, foi grandemente difundida entre os americanos somente em meados da década de 90, no campo do business administration e do knowledge management). No fundo, uma tal iniciativa seria apenas a materialização de uma realidade que já vivemos, onde se entende que a posse de um conhecimento não traz consigo a indicação de seu valor, uma vez que esse último varia em função da oportunidade gerada por problemas atuais.

A idéia de uma tal cartografia sempre teve esse objetivo: oferecer aos usuários o mapa dinâmico do capital intelectual de uma comunidade, para que eles pudessem se orientar em seus percursos de aprendizagem. Dessa forma, os indivíduos poderiam definir aquilo que querem ou precisam aprender, relacionando seu perfil pessoal ao valor de conexão real dos conhecimentos. Dar às pessoas o contexto de aplicação do que aprendem não significa mais do que isso: tornar claro os benefícios implicados em sua aquisição.

O objetivo de uma bolsa desse gênero é, em suma, mostrar que só há jogo se todos jogarem em função do benefício coletivo, e que é justamente a partir daí que cada um poderá extrair seus benefícios pessoais. Essa é a idéia de uma bolsa de conhecimentos: um projeto baseado em redes digitais, que mobiliza a inteligência coletiva de uma comunidade específica (alunos de uma escola, médicos, pacientes e funcionários de um hospital, colaboradores de uma empresa, funcionários de órgãos públicos, pesquisadores de uma universidade etc), permitindo que a oferta de saberes e competências se relacione com a demanda dos problemas que os aflige.

Sobre o autor:
Rogério da Costa ( rogcosta@pucsp.br ) é professor da pós-graduação em Comunicação e Semiótica do Dept. de Ciência da Computação da PUC-SP. É membro do Comitê Científico da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) e Integrante da Canada Research Chair in Collective Intelligence, University of Ottawa, dirigida por Pierre Lévy.
É autor do livro “A Cultura Digital” (leia a resenha na seção Biblos & Bytes - Livros deste site)
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Última atualização: sábado, 2 abr 2011, 03:14