Educação a distância e o refinamento da exclusão social
Fonte: http://www.revistaconecta.com/ [22/02/03] (pesquisa realizada em março/2003)
Educação a distância e o refinamento da exclusão social
Wagner Braga Batista
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRJ. Professor do Departamento de Desenho Industrial, Campus II, UFPB.
Introdução
A educação a distância tem sido invocada como solução para as carências educacionais. Novos implementos técnicos potencializam o ensino a distância, reforçando esta idéia. Sugerem a intensificação do esforço educacional e a ampliação do seu alcance social. As tecnologias educacionais dão a crer que possam atenuar disparidades educacionais em várias partes do mundo. Ensejando tal perspectiva, projetos de ensino a distância são inseridos em políticas educacionais autodenominadas inclusivas. Propostos por instituições distintas, projetos de ensino a distância revelam ambigüidades. Promovido por agências financeiras multilaterais, por organismos públicos ou por empresas privadas, o ensino a distância reveste-se de características diversas. Tecnologias educacionais, potencialmente aptas a fornecer maior amplitude à educação pública, convertem-se em barreiras para segmentos da população com pouca ou nenhuma familiaridade com seu manejo. Apropriadas por investidores privados tornam-se instrumentos da comercialização do ensino. Favorecem, deste modo, a expansão do mercado educacional e o surgimento de restrições socioeconômicas impostas pelo ensino pago.
Acionado com diferentes propósitos, o ensino a distância sofre deformidades. À luz destas deformidades evidencia-se o hiato entre objetivos nominais e os reais resultados de programas educacionais. Este descompasso redunda em digressões. O objetivo nominal de suprir lacunas educacionais dá lugar a ações ambíguas. Por meio delas, objetivos públicos e interesses privados vêm à tona no campo educacional. Recorrem a argumentos e a práticas díspares para legitimar, ao seu modo, projetos de ensino a distância com propósitos diametralmente opostos. Estes projetos embutem ingredientes econômicos, políticos e ideológicos contraditórios. Suas lógicas antagônicas irão se opor na disputa para prover inadiáveis demandas educacionais.
Apresentado como solução para problemas educacionais, o ensino a distância converte-se em domínio no qual se imiscuem interesses políticos e econômicos de caráter restrito. Na atual conjuntura, a prevalência de interesses privados instrumentaliza a educação e distorce projetos de publicização do ensino a distância.
O discurso em prol da democratização do ensino, das oportunidades de acesso ao sistema educacional e da justiça social mascara o sentido de investimentos privados. É empregado como expediente ideológico que viabiliza a aceitação e a expansão do ensino pago. A rede privada amplia-se mediante programas de ensino a distância.
Apregoada como canal da democratização do ensino, a educação a distância está sujeita às formas de apropriação típicas da economia de mercado. A apropriação privada dos implementos técnicos, dos canais de acesso e de veiculação do ensino a distância comprometem sua destinação social. A apropriação privada distorce proposições formais de universalização do ensino através das novas tecnologias educacionais. Submetido ao controle privado, ao invés de proporcionar o acesso indiscriminado à educação, o ensino a distância tende a refinar a exclusão social.
Neste contexto, agências multilaterais desenvolvem notável empenho em instituir a diferenciação do sistema educacional. Sob o rótulo da diferenciação do sistema educacional(1), esconde-se o implemento da rede privada de ensino como alternativa à educação pública. Por esta via, a oferta de educação supletiva, com padrões de qualidade heterogêneos, e o ensino pago são apresentados como opções de atendimento às demandas educacionais.
Neste diapasão, a eficiência técnica é adotada como parâmetro de qualidade para valorizar o ensino a distância. Os álibis da modernização do ensino e da eficácia tecnológica têm sido adotados para conferir valor simbólico à educação e para legitimar o "justo preço" pelo presumido ensino de qualidade. Nas instituições de ensino públicas, sob diferentes pretextos, o ensino a distância, gradativamente viabiliza a cobrança de taxas e institui o ensino pago. Seja por intermédio de atividades de extensão ou de cursos de especialização torna-se corrente a oferta de programas de ensino a distância mediante contrapartidas financeiras.
O discurso da democratização educacional dá lugar aos sutis mecanismos de privatização empreendidos por intermédio de programas de ensino a distância.
Contraditoriamente, potencialidades técnicas ao invés de ampliarem o acesso à educação pública convertem-se em dispositivos que criam novas barreiras educacionais. Ao invés de se somarem às tentativas de superação de carências educacionais transformam-se em fontes de investimento privado, de restrições impostas pelo ensino pago e de aumento de disparidades sociais.
O resgate da educação, como canal de ascensão social
Sob a influência liberal, no final do século XX, a educação experimenta extraordinário ressurgimento. A educação readquire a importância perdida na década precedente. Desgastada no transcurso dos embates em defesa da educação pública, ressurge como domínio propício a investimentos privados. O crescente deslocamento do poder público pelas políticas neoliberais, abre terreno para investimentos. Estratégias publicitárias, sancionadas no meio acadêmico, apresentam a educação como canal de mobilidade em meio à crise social que se alastra. Em contexto bastante diverso, a educação reveste-se da mesma relevância que lhe atribuíram articulistas liberais nos anos de ouro do capitalismo. Ressurge a teoria do capital humano, associada à perspectiva da empregabilidade como canal de ascensão social. Sintonizada com a restauração liberal adquire vulto em políticas conservadoras. Na agenda política norte-americana ganha prioridade. Destaca-se nos debates para a sucessão de Clinton, causando a primeira grande polêmica no Governo Bush(2). A proposta de subsidiar a transferência de estudantes para a rede privada defronta-se com a resistência de educadores. Sob a hegemonia liberal o prestígio e a expansão educacional confunde-se com as diferentes formas de estímulos governamentais à rede privada de ensino. Essa diretriz emanada do Banco Mundial- BIRD e do Banco Interamericano de Desenvolvimento- BID, está disseminada em países clientes destas agências financeiras multilaterais.
A crise econômica é mascarada por ideologias que atribuem os desajustes estruturais e as disparidades sociais à incapacidade de segmentos da população acompanharem o desenvolvimento técnico. A falta de conhecimentos e de competências técnicas inviabilizariam a inserção produtiva destes segmentos. Ou seja, os ineptos pagam por não terem se capacitado para o exercício produtivo. Por intermédio deste artifício, conseqüências da expropriação são transformadas em causas de problemas sociais crônicos. Assim, a pobreza é associada ao baixo desempenho educacional. A falta de escolaridade é convertida em causa do desemprego. Os baixos padrões de vida são devidos à limitada capacidade de iniciativas de amplos setores da população. Amparada em condutas e volições individuais esta lógica dissimula a acumulação privada que dá origem às desigualdades sociais. Encobre a estrutura de classe que organiza política e economicamente a sociedade capitalista.
Bem sucedida ao mascarar a crise social e exacerbar o individualismo, a doutrina liberal não encontra fôlego para oferecer alternativas de continuidade a um sistema cuja dinâmica está centrada na concentração econômica, na destruição de forças produtivas e na crescente exclusão populacional. O fomento da educação gera ilusões de que a sociabilidade e a inserção produtiva estejam condicionadas pela aquisição de conhecimento ou de competências técnicas. Esta alternativa, ainda que contemple parcelas restritas, não consegue atender ao conjunto da população face à estrutura social excludente na qual se viabiliza..
A ideologia liberal resgata a educação como fonte de novo iluminismo. Neste contexto proliferam teorias que colocam o conhecimento, a comunicação ou a informação no centro da vida social. Modelos de sociedade inspiram-se na atual profusão de informações. Anunciam cenários futuros nos quais o conhecimento e as redes de comunicação substituem relações de produção. Nesta concepção, a produção social é despojada de sua base material. O conhecimento e as interações virtuais ascendem à condição de forças motoras da vida social.
A educação e o conhecimento convertem-se em forças materiais desde que aplicados à produção social. A produção social vislumbrada em domínios virtuais, não se viabiliza sem implementos técnicos e insumos materiais. O conhecimento se adiciona às relações sociais e aos meios de produção como trabalho acumulado. Despojado dos meios de produção e do trabalho humano, o conhecimento é inerme.
Contudo, esta nova mística iluminista atribui valor simbólico à educação. Ou seja, valor de troca. Estes valores se configuram nas teorias do capital humano. A valorização da educação como capital humano serve a dois propósitos que se conjugam. Confere valor simbólico à educação e, conseqüentemente, anima o mercado educacional.
A educação a distância, via de privatização do ensino
A educação a distância converte-se em instrumento a serviço destes propósitos. Cria um mercado sem precedentes cujas fronteiras são cada vez mais elásticas. Diante da abertura das economias periféricas e da escalada da desregulamentação, os limites do mercado para a educação a distância são definidos por barreiras lingüísticas e culturais. O ensino on line amplia o alcance e acelera extraordinariamente a reprodução do capital no campo da educação.
Apresentado como solução para a cobertura de matrículas, o ensino a distância deixa obscuros os interesses privados que o promovem. Desvelados estes interesses, o ensino on line habilita-se a superar distâncias físicas e geográficas, porém instala barreiras sócio-econômicas. Barreiras que impedem o livre acesso ao ensino pago. As potencialidades técnicas e pedagógicas que propiciariam a provisão de carências educacionais existentes convertem-se em fontes de novas restrições acionadas por interesses privados. À luz deste considerando, a democratização ensejada pelo ensino a distância constitui-se em ardil do ensino privado. O discurso que apela à democratização, à igualdade de oportunidades educacionais e à justiça social converte-se em álibi do ensino pago.
Submetida à lógica da economia de mercado, a educação a distância ao invés de democratizar o acesso à educação pública contribui para promover a exclusão social por intermédio de movimentos controversos: a elitização combinada com a massificação do ensino.
A modernização educacional de caráter conservador
A modernização educacional de caráter conservador implementa a educação a distância como via preferencial de expansão do ensino privado. Por esta via, estimula empreendimentos em áreas nas quais a educação se mostra mais rentável: ensino superior e especializado.
Esta estratégia é consoante com a perspectiva de diferenciação do sistema educacional e das instituições de ensino, que favorece investimentos privados. A diferenciação erode padrões de qualidade unitários e abre espaços privilegiados para a oferta de grande diversidade de programas educacionais à margem de avaliações criteriosas. Institui-se no campo educacional, o jogo das forças de mercado, induzindo à presunção de que as preferências individuais impõem a qualidade desejada. Como qualquer mercadoria, a educação é transformada pelo liberalismo em objeto de flutuações do mercado. Este processo de degradação do ensino reflete-se, também, nas instituições escolares.
Concebida como instituição obsoleta diante do advento das redes de informática e de ambientes virtuais de aprendizagem, a escola é posta em questão. Neste contexto, o debate sobre a relevância da escola deve mobilizar os educadores. Avessa às índoles autonomistas e competitivas, a escola revela-se espaço insubstituível na vida social. Nela realizam-se a sociabilidade e a convivência que se contrapõem ao exacerbado individualismo.
A apologia da interação virtual subtrai os fundamentos sociais das relações humanas. Estas relações têm origem e lugar em instituições sociais. As interações humanas e as conexões técnicas não substituem instituições educacionais. Impulsionam sua transformação, porém não anulam sua função socializadora. Ou seja, a escola não é volátil como a teorização que pretende banalizá-la.
As investidas contra as instituições de ensino, oferecem modelos alternativos. Sugerem configurações que articulam grupos econômicos aparentemente díspares. A exemplo, congregam interesses ligados ao setor de entretenimentos ( Disney ), às empresas midiáticas ( Times -Warner ) , à provisão de tecnologias e à consultorias educacionais(3). A tentativa de desfiguração das instituições de ensino vem acompanhada da formação de consórcios que procuram maquiar sua natureza mercantil. A imagem destes consórcios não dá margens a dúvidas quanto as suas pretensões cosmopolitas. Sua visibilidade empresarial não deixa transparecer a nacionalidade, os objetivos comerciais e o conteúdo dos programas educativos que oferecem. As instituições de ensino servem como marcas. Estratégias publicitárias utilizam-se universidades de renome internacional para elevar o valor simbólico de seus programas.
Nestas estratégias, instituições de ensino e de pesquisa já não são os centros preferenciais de elaboração do conhecimento técnico e pedagógico aplicados ao ensino a distância destinado à comercialização. A produção destes institutos, sujeita a critérios de validação, esbarra na agilidade e na falta de parâmetros reclamada para a comercialização do ensino. A lógica mercantil aciona o trabalho de consultorias. Núcleos ou grupos de educadores autônomos são guindados à condição de experts por intermédio de estratégias publicitárias para legitimar e para valorizar produtos de consórcios educacionais. Deste modo, a educação a distância vê-se subordinada a mecanismos publicitários e à lógica do mercado. Vê-se reduzida, outrossim, a modalidades de ensino prescritivo ou de treinamento corporativo de fácil comercialização.
A falta de controle e o descaso de políticas educacionais de governo propiciam investimentos privados que transformam a educação a distância em negócio altamente rentável.
A modernização tecnológica apregoada pelas políticas oficiais adiciona-se às estratégias publicitárias de supervalorização do conhecimento e da educação. Concebida como capital humano, a educação é simplificada e disponibilizada on line por tecnologias sob controle privado.
Educação e concentração econômica
Seguindo a mesma tendência da economia capitalista, o campo educacional também está sujeito ao movimento de concentração de investimentos. As fusões observadas nos setores estratégicos da economia, que visam alcançar maior pujança na conquista de mercados, alijando possíveis concorrentes, também ocorrem no campo educacional.
A proposta de diferenciação dos sistemas educacionais tem como propósito favorecer investimentos privados. Abrir o campo da educação para a formação de mercado e para a ampliação da rede de ensino privada. Esta proposta, pseudo-democrática não prevê a contenção dos fluxos de investimentos privados que se concentram em consórcios transnacionais de ensino a distância. Por esta via, o ensino privado expande-se internacionalmente.
As mega-universidades que se utilizavam basicamente do ensino por correspondência são substituídas pelos consórcios que irradiam a partir de campi virtuais. Valendo-se do alcance mundial das redes de informática e das telecomunicações, as atividades dos campi off não reconhecem fronteiras limítrofes. Deste modo, através de convênios, de pacotes educativos, de matrículas on line, entre outras modalidades de oferta de serviços educacionais estes consórcios penetram em nações, regiões e continentes. Os consórcios educacionais, assim como as corporações transnacionais, beneficiam-se da desregulamentação patrocinada pela ideologia liberal.
A compleição das mega-universidades irá sofrer mudanças graças às fusões acima descritas.
A guisa de ilustração, apresentamos um quadro que indica a pujança das mega-universidades. Constituídas em diferentes momentos para atender a diferentes propósitos, enfrentam sérias dificuldades para preservar objetivos associados ao ensino público. Gradativamente tornam-se reféns de interesses comerciais.
Mega-universidades : Dados Básicos(4)
País
Nome da instituição
Criação
Estudantes em programa de graduação(5)
Graduados por ano
Orçamento US$ milhões
Taxas estudantis
Subsídios do governo
Custos unitários(6)
China
China TV University System
1979
530,000
101,000
1.2 (7)
0
75
40
França
Centre national d'enseignement à distance
1939
184,614
28,000
56
60
30
50
Índia
Indira Gandhi National Open University
1985
242,000
9,250
10
42
58
35
Indonésia
Universitas Terbuka
1984
353,000
28,000
21
70
30
15
Irã
Payame Noor University
1987
117,000
7,563
13.3
87
13
25
Coréia
Korea National Open University
1982
210,578
11,000
79
64
36
5
África do Sul
University of South Africa
1873
130,000
10,000
128
39
60
50
Espanha
Universidad Nacional de Educación a Distancia
1972
110,000
2,753
129
60
40
40
Tailândia
Sukhothai Thammathirat Open University
1978
216,800
12,583
46
73.5
26.5
30
Turquia
Anadolu University
1982
577,804
26,321
30 (8)
76
6
10
Reino Unido
Open University
1969
157,450
18,359
300
31
60
50
No curso da década de 90, o campus virtual transforma-se no modelo básico de expansão do ensino a distância em escala planetária. Através de redes e de consórcios fomentados pelo Banco Mundial ocupam continentes, a exemplo da África. Em outras regiões valem-se de experiências consolidadas para expandir o ensino privado através de grandes consórcios educacionais. No sudeste asiático é notável a influência dos consórcios educacionais norte-americanos (9). Na Oceania e no sul do Pacífico, instituições privadas australianas ocupam o mercado formado pelo ensino a distância.
Os consórcios transnacionais são desdobramentos da escalada privatista que ganha vulto a partir da década de 70. São arcabouços concebidos por agências multilaterais para sediar interesses privados que se disseminam no campo educacional. Articulam propensões privatistas que se desenvolvem no interior de universidades públicas graças a investimentos externos que capitalizam as potencialidades existentes nestas instituições. Essa tendência, ainda embrionária no Brasil, manifesta-se nos objetivos de projetos de educação a distância realizados em instituições de ensino superior públicas. Em sua ampla maioria visam contrapartidas financeiras obtidas através da cobrança de taxas dos usuários.
O alcance dos consórcios é a resposta do mercado à inépcia política, à incapacidade de constituir sistemas de educação pública em escala regional ou nacional. O êxito de investidores privados resulta do colapso da educação pública agravado pelo descaso das políticas de governo a partir da década de 80. Estudantes sequiosos de vagas no ensino superior vêem-se à mercê de interesses privados. Estes interesses enquistados em instituições de ensino superior públicas barram o avanço da educação pública.
O ensino a distância na década de 90 caracteriza-se pela ascendência dos interesses privados sobre os públicos. Presidida pela perspectiva de abarcar mercados educacionais periféricos é acionada por corporações transnacionais que se valem de instituições acadêmicas em estratégias de marketing. Nucleando convênios, parcerias ou consórcios, instituições universitárias seculares transformam-se em plataformas de investimentos privados que visam conquistar o mercado educacional mundial. Formam-se grupos de investimento que confundem objetivos universitários com interesses mercantis de curto prazo. Administrações universitárias abraçam estratégias promocionais convertendo a excelência acadêmica em signo da inserção no mercado educacional.
UNIREDE: caixa de ressonância da política educacional vigente
Em meados de 1999, professores vinculados a administrações de instituições federais de ensino superior articulam a formação da Universidade Virtual Pública do Brasil-UNIREDE. Em agosto do ano seguinte seria lançado o consórcio de instituições de ensino públicas contando com recursos da ordem de R$ 4 milhões provenientes dos ministérios da Educação, Ciência e Tecnologia e das Comunicações (10). Na oportunidade, a UNIREDE congrega 62 instituições de ensino superior públicas.
O processo de formação da UNIREDE é bastante controverso. Enseja reflexões que não devem estar limitadas aos objetivos nominais deste consórcio. Neles, o caráter público confunde-se com a noção do domínio no qual se constitui o consórcio. Formado por instituições públicas, o consórcio não constitui garantia de ensino público e gratuito. Reflete o jogo de interesses que penetra a universidade pública brasileira. Profundamente abalada em sua autonomia, a universidade pública brasileira, está constrangida por restrições financeiras, que transformam o espaço público em domínio no qual prosperam interesses privados. Se, até então, foram infrutíferas as tentativas de privatização das instituições de ensino públicas, o mesmo destino não tiveram iniciativas residuais no seu interior. Por meio delas, verifica-se a ascendência de interesses privados à revelia de suas administrações e dos seus órgãos colegiados.
Neste quadro, o vocábulo público reveste-se de conotações díspares. Incorpora inclusive, a anômala disputa de domínios públicos por interesses privados que se disseminam nestas instituições.
A UNIREDE nasce sob o signo de políticas e de concepções que não conferem primazia à educação pública. Nesta medida, torna-se alvo de setores que tentam convertê-la em veículo de produtos educacionais para o mercado, transformando o ensino, a pesquisa e a extensão universitária em fonte de dividendos privados.
A proposta da UNIREDE não é inusitada. Esta iniciativa, aparentemente, pioneira e autônoma dá continuidade à proposta do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras- CRUB, formulada em 1993. Na ocasião delineia-se o primeiro consórcio de instituições públicas. O conteúdo do convênio assinado pelos Reitores, em Brasília, prevê a criação do Consórcio Interuniversitário de Educação Continuada e a Distância- BRASILEAD, formado por 54 instituições de ensino superior públicas. Entre os objetivos do consórcio está a colaboração com "os governos federal, estaduais e municipais no aumento e diversificação da oferta das oportunidades educacionais do país, através da criação do Sistema Nacional de Educação a Distância, sob o comando do Ministério da Educação e do Desporto (11)."
Em tese, o ideário da UNIREDE tem como meta o ensino público. Contudo, na configuração do consórcio manifestam-se dificuldades de explicitar claramente este propósito, tendo em vista a captação e a gestão de recursos financeiros. A idéia da autonomia já traz subjacente a perspectiva da auto-sustentação financeira.
Na ata do segundo encontro preparatório para a UNIREDE esboçam-se os objetivos nominais e as metas perseguidas pelo consórcio. Em primeiro lugar inscreve-se a perspectiva de "consolidar a educação a distância, como alternativa de democratizar o acesso ao ensino superior público (12)".
Em outubro de 2000, a UNIREDE lança o edital de oferta do curso de especialização lato senso de formação em educação a distância. Este cursos é promovido por 10 de suas 62 universidades interligadas. São oferecidas 650 vagas distribuídas segundo critérios pouco plausíveis. Vejamos: 45 vagas para profissionais das universidades da UNIREDE,10 vagas para profissionais indicados pela SEED/MEC e 10 vagas para profissionais externos. O consórcio que se dispunha a promover a democratização do ensino, adota a reserva de vagas e instaura a reserva de vagas e adota a cobrança de taxas. As taxas inicialmente fixadas em R$ 195,00 por módulo, serão posteriormente majoradas para R$ 400,00 (13). A provisão gratuita de clientela com a venda de vagas estabelece inaceitável privilégio. Longe da discriminação positiva, a clientela constituída por indicados pela Secretaria Especial de Educação a Distância- SEED e por integrantes das instituições parceiras no consórcio viola preceitos de equidade de acesso às oportunidades de ensino oferecidas por instituições públicas.
Contraditando o anúncio dos recursos provenientes de diversos ministérios, afloram depoimentos de que a cobrança de taxas tem como intuito cobrir despesas da implantação do projeto. Este arrazoado que sugere empenho na tentativa de dar curso à UNIREDE. Examinado atentamente coaduna-se com a perspectiva da auto-subsistência lograda através da oferta de serviços pagos. Este expediente contribui para a institucionalização do ensino pago e legitima políticas de restrição de recursos para a educação pública. A cobrança de taxas não é fortuita. Articula interesses restritos, o ensino pago vai se converter nos pro-labores de docentes envolvidos neste projeto. Expediente em franca contradição com o estatuto dos docentes das IFES.
Num passe de mágica os RS 4 milhões destinados à UNIREDE desaparecem. Em seu lugar, a alegada carência financeira se impõe como justificativa da cobrança de taxas. Outras alegações compõem o arrazoado que oscila da defesa do pagamento de direitos autorais até o redobrado empenho de planejamento de cursos, como se estas atividades já não fossem atribuições docentes. Estes argumentos foram a tônica do III Encontro da UNIREDE ( fevereiro- 2001) . Sustados pela intervenção de uma participante que indaga sobre o regime de trabalho dos professores envolvidos com esta iniciativa, ressurgem com vigor na oportunidade em que o projeto é implementado. Esse discurso e as ações subseqüentes sacramentam condutas correntes nas instituições de ensino superior públicas. Levadas à míngua pelas restrições orçamentárias, compelem professores a desfigurarem princípios da própria carreira e regime de trabalho que prevê a dedicação integral à instituição de ensino. Deste modo, promovem a dissociação entre ensino, pesquisa e extensão, amparados no falso argumento da produtividade utilizado para obtenção de remunerações adicionais, lícitas ou não. Esta compensação financeira está sendo alcançada através da involuntária privatização do ensino público superior.
O discurso da democratização dá lugar à alegada necessidade de sobrevivência da UNIREDE. O pragmatismo subverte a vocação pública deste consórcio. Apresentado como um projeto autônomo alimenta durante curto período a presunção de que não é parte de estratégia de governo. Talvez, não seja a ação prioritária neste campo, contudo, não se dissocia das políticas restritivas vigentes. Como linha auxiliar, contribui de forma sutil para diferenciar e reconfigurar instituições de ensino superior. Deste modo, o autofinanciamento se impõe não como resultado da abnegação docente, mas como incorporação de diretriz política de governo. Nesta medida, a busca de contrapartidas financeiras pela UNIREDE antecipa política que o governo tenta aplicar a todas instituições de ensino superior. Diretriz que, uma vez consolidada, desobrigará o governo de fornecer os recursos a programa que considera indispensáveis.
A captação de recursos residuais através do ensino pago é duplamente controversa. É insuficiente para manter e ampliar programas com as características do curso oferecido e por outro lado se choca com o anúncio de verbas ministeriais destinados à UNIREDE. Na prática pode estar contribuindo tão somente para introduzir e legitimar o ensino pago na esfera pública, contrariando os objetivos originais da UNIREDE.
Simultaneamente ao lançamento do consórcio de instituições públicas, o ministro da Educação, professor Paulo Renato, participa da aula inaugural do Curso de Preparação de Professores Autores e Tutores para a Educação a Distância, realizado pela Universidade Virtual Brasileira -UVB.BR. A Universidade Virtual Brasileira é uma rede formada por instituições privadas visando a oferta de cursos por educação a distância.
A perspectiva de formação de consórcios anima investidores privados sequiosos de deter o controle de promissor mercado educacional.
Sob este prisma, ao invés de fazer frente ao setor privado, instituições públicas contribuem para a implantação do ensino pago e abdicam de sua vocação. Assumem postura incompatível com sua função social. Linhas auxiliares da expansão do mercado educacional, alguns programas de ensino a distância oferecidos em estabelecimentos de ensino públicos exercem papel subsidiário da rede privada. Eliminam preconceitos remanescentes, familiarizam estudantes com novas tecnologias e linguagens e favorecem a visibilidade social do ensino a distância. Em paralelo, institucionalizam o ensino pago e geram clientela para o mercado educacional em expansão.
Neste contexto, as forças vivas da universidade pública brasileira estão concitadas a resistir a escala privatizante. Molibilizando suas potencialidades e demonstrando arrojo na oferta de educação pública, gratuita e de qualidade em todos os níveis. Deste modo, a universidade capacita-se a exercer seu papel como um dos vetores do desenvolvimento sócio-econômico nacional.
Considerações finais
A expansão do ensino privado por meio de cursos a distância está sintonizada com as diretrizes liberais hegemônicas nos anos 90. A abertura das economias periféricas, as políticas de estabilização fundamentadas no corte de gastos pública, conferem ao setor privado papel fundamental na oferta de serviços básicos, entre os quais a saúde e a educação.
A supremacia da Open University a partir dos anos 70, alcançada através da difusão editorial, é posta por terra. A mudança da base técnica da acumulação de capital também se refletirá nos investimentos no campo educacional. As inovações tecnológicas acionadas por interesses privados modificam os suportes do ensino a distância, alteram a correlação de forças entre empresas que disputam o mercado educacional. Os novos consórcios transnacionais configurados para atuar em escala planetária não reconhecem limites políticos ou econômicos. Com grande poder de dissuasão exercem influência ideológica, cultural e educacional em todas as partes do mundo.
Pacotes de ensino a distância beneficiam-se da atrofia e do colapso de instituições de ensino públicas. Por esta via, a modernização educacional alicerça interesses díspares canalizados para o mercado educacional. Deste modo, ao invés de promover a democratização educacional, o ensino privado a distância produz antípodas. Ou seja, à sofisticação que contempla a formação de quadros técnicos para atender setores dinâmicos da economia de mercado, combinada com o ensino de massas de baixa qualidade.
Neste contexto, a educação a distância permite que corporações transnacionais não reconheçam fronteiras. Seus investimentos educacionais articulam a "indústria cultural" com a "indústria do conhecimento". Acionam o potencial tecnológico acumulado e as redes de comunicação a seu dispor para oferecer cursos em todos os idiomas. Pacotes e programas educacionais são comercializados em escala planetária. Sob este viés, a educação a distância, sob controle privado, ao invés de socializar o acesso à educação pública refina a exclusão social.
Referências bibliográficas
Ata do 2º Encontro da UNIREDE, Brasília, 18 de janeiro de 2000, URL: http://www.unirede.br
Bush quer verba pública para a escola privada, Republicano é acusado de privatizar a educação com a idéia de financiar ensino em escolas privadas. Folha de São Paulo, 1o Caderno, Mundo, 21 de janeiro de 2001, p. A 14
Caramel, Laurence, OMC quer liberalização global de saúde e educação, URL : http://www.uol.com.br/lemonde/
lm0210200001.htm
Curso de Formação em EAD- UNIREDE: URL: http://www.unirede.br
Daniel, J.S. 1996, Mega Universities and Knowledge Media: Technology Strategies for Higher Education (London: Kogan Page) apud Potashnik, Michael et Capper, Joanne. Distance Education: Growth and Diversity. URL : http://www.worldbank.org/fandd/
english/0398/articles/0110398.htm
Estado terá universidade virtual, Correio do Povo, 02 de abril de 2000, Porto Alegre, RS, p. 7.
Guimarães, Paulo V. A contribuição do consórcio Interuniversitário de Educação a Distancia-BRASILEAD- para o desenvolvimento da educação nacional. Em Aberto, v.16, n.70, abr./jun. 1996. INEP / MEC, DF, p. 22
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Noble, David, The Automation of Higher Education, in Digital Diploma Mills, Part I, october / 1997. URL:
http://communication.ucsd.edu/dl/
Universidade virtual estréia em agosto . Folha de São Paulo, Cotidiano, 27 de junho de 2000, p. 5
Notas
Entre outros textos tratando deste tema, consideramos expressivos os citados a seguir. La enseñanza superior. Banco Mundial, Washington DC, 1995 et Higher education in Latin America e Caribean, A strategy paper, n ° EDU-101, Washington DC, 1997
Bush quer verba pública para a escola privada, Republicano é acusado de privatizar a educação com a idéia de financiar ensino em escolas privadas. Folha de São Paulo, 1o Caderno, Mundo, 21 de janeiro de 2001, p. A 14
Noble, David, The Automation of Higher Education, in Digital Diploma Mills, Part I, october / 1997. URL: http://communication.ucsd.edu/dl/.
Daniel, J.S. 1996, Mega Universities and Knowledge Media: Technology Strategies for Higher Education (London: Kogan Page) apud Potashnik, Michael et Capper, Joanne. Distance Education: Growth and Diversity. URL : http://www.worldbank.org/fandd/
english/0398/articles/0110398.htm
Matrículas no início do ano entre 1994 e 1996
Custo unitário por estudante em termos porcentuais face ao custo médio por estudante de outras universidades no país.
Somente a unidade central
Somente a Faculdade de Educação Aberta
"No campo da educação, o risco se refere principalmente à perda de soberania dos países em termos de conteúdo da educação -tendência já adotada no Sudeste Asiático, onde as universidades americanas ocupam o mercado."Caramel, Laurence, OMC quer liberalização global de saúde e educação, URL : http://www.uol.com.br/lemonde/lm0210200001.htm
Universidade virtual estréia em agosto . Folha de São Paulo, Cotidiano, 27 de junho de 2000, p. 5
Termos do convênio assinado pelos reitores das universidades brasileiras em setembro de 1993 ( p.1 e 2 ) apud . Guimarães, Paulo V. A contribuição do consórcio Interuniversitário de Educação a Distancia-BRASILEAD- para o desenvolvimento da educação nacional. Em Aberto, v.16, n.70, abr./jun. 1996. INEP / MEC, DF, p. 22
Ata do 2º Encontro da UNIREDE, Brasília, 18 de janeiro de 2000, URL: http://www.unirede.br
"As senhas de acesso, por módulo, por tempo determinado (FPE: 15/11/00 a 15/01/01), para os profissionais externos, serão distribuídas mediante apresentação de comprovante de pagamento às Universidades conveniadas, no valor de R$195,00 por módulo."UNIREDE Curso de Formação em EAD: URL: http://www.unirede.br