Fonte: http://www.faced.ufba.br/~dept02/sala_interativa/
texto_grupo.html
(pesquisa realizada em dezembro/2002)


Conversando sobre interatividade

Alessandra de Assis Picanço
Andréa Ferreira Lago
Maria Helena Silveira Bonilla
Nelson De Luca Pretto
Sidnei Alvaro de Almeida Lima
Tânia Maria Hetkowski

Este texto é o resultado de vários encontros realizados pelos membros do Grupo de Educação e Comunicação/NEPEC/FACED/UFBA na tentativa de responder a questão "o que é interatividade?". Nessa tentativa, acabamos desenvolvendo um processo interativo, ou seja, o processo de construção coletiva acabou sendo a explicitação do próprio conceito. Devaneamos nas ondas da potencialização, virtualizamos processos dinâmicos, fluímos ao encontro de novos interlocutores.

É difícil dizer como tudo começou - e será que é possível determinar o início de qualquer coisa? - A questão vinha à tona cada vez que um grupinho se encontrava na sala de aula, no núcleo de trabalho, no corredor. Às vezes a discussão fluía durante o almoço, regado por boas e frutíferas conversas, por dúvidas e reclames de nós alunos-pesquisadores, visto que os encontros de sala de aula não chegavam a atender às necessidades específicas do grupo. A dinâmica da sala de aula, tanto no curso de pós-graduação, quanto no de graduação, levou-nos a uma insatisfação, pois não trazia para a discussão questões importantes para a prática pedagógica no contexto atual, destacando-se dentre elas, o conceito/prática de interatividade.

Dessa forma, aumentava a necessidade de um espaço interativo, onde pudéssemos nos encontrar e falar da complexidade das relações em diferentes dimensões. Assim, formamos o grupo INTERATIVIDADE, que desejou intensamente interagir, e convidou inicialmente autores como Marco Silva, Pierre Lévy, Alex Primo e Márcio Cassol, Edgar Morin, interlocutores que nos provocaram e colaboraram em nossas calorosas discussões.

Num primeiro momento parece muito simples falar de e construir ambientes propícios à interatividade, mas não o é. Procuramos buscar diferentes visões e/ou significações dadas ao conceito. Para alguns, interatividade é sinônimo de interação. Para outros, interatividade significa simplesmente uma “troca”, um conceito muito superficial para todo o campo de significação que abrange, o que tem contribuído para que o termo seja usado em larga escala e na maioria das vezes de forma difusa. Temos como exemplo disso os programas de TV onde os espectadores podem escolher entre duas ou três opções, previamente definidas. Embora isso seja apresentado como interatividade, alguns autores definem como reatividade (Machado, 1990), uma vez que nada mais resta ao espectador senão reagir aos estímulos a partir das alternativas que lhe são oferecidas.

Para Lemos (2000), interatividade é um caso específico de interação, a interatividade digital, compreendida como um tipo de relação tecno-social, ou seja, como um diálogo entre homem e máquina, através de interfaces gráficas, em tempo real. Entretanto, para Lévy (1999:82) “a interatividade assinala muito mais um problema, a necessidade de um novo trabalho de observação, de concepção e de avaliação dos modos de comunicação do que uma característica simples e unívoca atribuível a um sistema específico”, não se limitando, portanto às tecnologias digitais. Assim, nossas discussões giraram em torno da distinção entre interação e interatividade; as perguntas fluíam, umas entrelaçadas noutras:

Eu posso interagir com uma planta se eu quiser? (...) Qual a diferença entre interagir com uma planta e com um livro? Sou eu que imprimo os significados e, dependendo deles, a planta tem mais sentido para mim do que um livro. Pense na sociedade sem escrita? O que era mais importante? É... veja os Indus que têm uma vaca como animal sagrado! É sagrado porque é significativo para o povo, para a cultura, para as crenças! Eu acho que é muito mais interativo um livro, pois leiam este trecho , é lindo. Eu simplesmente interagi!!!! Sim... você acha que o livro é mais interativo porque você gostou do texto, porque você viajou no texto. Poderia acontecer a mesma reação com todos os sujeitos que leram ou que lerão esse mesmo texto?

Esse papo foi longo. A discussão desencadeou uma rede de palavras entrecruzadas, tranversalizadas, enlouquecidas, devaneadas que trouxeram livros, internet, plantas, vacas, crenças, significados e... sala de aula. Tudo parecia uma grande bagunça. Mas interatividade é isso! É interruptabilidade, é não-linearidade, é potência, é cooperação, é permutablidade e é predisposição do sujeito a falar... ouvir... argumentar... é disponibilizar-se conscientemente para mais comunicação. Ou seja, transitar, transmigrar e desenvolver um modo de pensar e agir segundo uma racionalidade-em-trânsito.


Esse conceito de interatividade é bem mais recente que o conceito de interação, o qual vem sendo utilizado nas mais variadas ciências como “as relações e influências mútuas entre dois ou mais fatores, entes, etc. Isto é, cada fator altera o outro, a si próprio e também a relação existente entre eles” (Primo & Cassol, 1999). Já o termo interatividade surgiu no contexto das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC), com a denominada geração digital. Entretanto, o seu significado extrapola esse âmbito. Para Silva (1998:29), a interatividade está na “disposição ou predisposição para mais interação, para uma hiper-interação, para bidirecionalidade - fusão emissão-recepção -, para participação e intervenção”. Portanto, não é apenas um ato de troca, nem se limita à interação digital. Interatividade é a abertura para mais e mais comunicação, mais e mais trocas, mais e mais participação.

É a disponibilização consciente de um mais comunicacional de modo expressivamente complexo, e, ao mesmo tempo, atentando para as interações existentes e promovendo mais e melhores interações – seja entre usuário e tecnologias comunicacionais (hipertextuais ou não), seja nas relações (presenciais ou virtuais) entre seres humanos. (Silva, 1999:155)

Essa abertura a um “mais comunicacional” pode e deve ocorrer em todas as formas de relação, sejam elas presenciais ou não, estejam elas utilizando tecnologias hipertextuais ou não, visto que essa predisposição é inerente ao ser humano. A nossa postura frente a uma sessão de cinema, por exemplo, mostra a necessidade que temos de querer retroceder, voltar, adiantar, para que possamos analisar alguma coisa que não entendemos ou saltar algo que não nos interessa, de acordo com a nossa vontade. Apesar do vídeo oportunizar esse avançar e retroceder, expressando algum nível de intervenção, isso ainda não satisfaz a necessidade que temos de redirecionar o fluxo comunicacional. O mesmo ocorre com o controle remoto quando o usuário faz o zapping, alternando entre os canais disponíveis, sejam eles 5 ou 150.

Essas possibilidades advindas com os avanços tecnológicos, apesar de não transformarem o vídeo, a TV, o rádio, em meios interativos, nos instigam a querer transgredir a lógica de comunicação tradicional, unidirecional, predefinida, massiva. Se podemos perceber essa inquietação nos adultos que pertencem à geração da TV, mais acostumados à recepção passiva, o que podemos dizer da nova geração que nasce imersa no contexto das NTIC, onde a lógica comunicacional é a da interatividade?

Para a educação, a compreensão desses conceitos e contextos é de fundamental importância, uma vez que a relação pedagógica é uma relação entre seres humanos imersos numa determinada cultura, por isso mesmo transformadores dela. Logo, a todos os sujeitos da educação deve ser oportunizada essa abertura a um "mais comunicacional".

As NTIC e a sala de aula já estão imbricadas, sendo que nesse processo estão se configurando novos contextos que vêm problematizar e potencializar as relações pedagógicas. Nesse sentido, as NTIC não vêm para solucionar os problemas educacionais, mas sim trazer novas questões para o debate, uma outra visão do processo pedagógico. É em função disso que este grupo trouxe a temática para a discussão.

O interessante é que só percebemos que vivíamos um processo interativo à medida que passávamos a entender o conceito de interatividade. Assim a discussão fluía:

Sim, acho que toda essa discussão é interatividade, aqui ninguém espera para falar, a gente fala quando tem vontade...!

Espera aí... esse processo difere da internet. Se for apenas por futucar na internet... ela tem um monte de páginas. E daí, não é tão interativa assim, tem poucas diferenças do livro.

É, mas ela tem links!

E as páginas que praticamente não têm links?

Bem, vamos ver. Pierre Lévy fala de interatividade: ela é mais interativa quando apresenta interrupção e reorientação do fluxo informacional em tempo real, implicação do participante na mensagem, diálogo, reciprocidade, diálogo entre vários participantes .

Então vamos pensar quais destas caraterísticas que a internet tem, que a sala de aula tem e o que livro tem.

Se pensarmos na internet, mais especificamente nas home-pages... podemos repensar o nível de interação que ela proporciona... podemos navegar..., depende também dos links que a página possui.

Ei, espere, e no caso dos chats e das listas de discussão?

Aí o negócio é diferente... vamos ver novamente o que Pierre Lévy e Silva sugerem. Apresenta reorientação do fluxo informacional? Possibilita a participação do sujeito em tempo real? Pode desencadear reciprocidade? Se apresenta estas características podemos dizer que essa interação encontra-se em um nível mais elevado?

Podemos sim, elas apresentam caraterísticas fundamentais para os sujeitos interagirem reciprocamente!

É sim, elas possibilitam um fluxo dinâmico de onde emergem novos processos.

Essas indagações teóricas pontuadas pelo grupo sempre buscavam uma relação com a prática docente.

Eureca... a maior prova de interatividade é a sala de aula.

Bem, depende do professor!

É, se for analisar a grande maioria das aulas não podemos dizer que acontece interatividade!

É isso aí, porque geralmente a aula acontece de forma linear, possibilitando apenas uma ação e uma reação, ou seja causa-efeito.

Chato a gente esperar a vez para falar... às vezes vou atravessando a conversa, o pessoal não gosta, mas eu faço!

Percebam, se a aula possibilitar que o aluno participe efetivamente, que fale quando quiser falar, que interrompa, que corte a linearidade, isso é uma interação bem mais significativa.

Legal... mas vamos colocar isso no papel!

Ah! Eu mesmo preferiria colocar isso em bits. Assim, quem sabe - fazendo circular - mais gente não pode meter o dedo na discussão?

Claro... e isso já seria uma forma de interatividade, não?

Claro... a idéia de interatividade então estaria ligada à produção coletiva que Lévy tanto fala.

... e a outra coisa interessante disso, é que no fundo existe uma organização. Mas diferente daquela organização que é imposta de fora e ........... dirigida por um - o chefe! Aqui a organização é coletiva. É uma auto-organização que vai se definindo no processo, no caminho.

Já perceberam que esse grupo realmente interage? E prova disso... que um grita de um lado, corta a fala do outro, fala junto, não deixa passar a idéia, legal...

Isso aponta para a idéia de caos que falávamos!

Assim, surgiram outras argumentações acerca de outros textos. Recorremos a Morin, quando nos fala das estruturas complexas, do caos que desencadeia a ordem, da desordem e da organização, tudo isso permeado pela álea, pelas multiplicidades, incertezas, flutuações, ambiguidades. Isso nos leva a pensar nas inúmeras conexões que nosso grupo fez para tentar definir e entender interatividade e interação nessa complexidade de movimentos. Movimentos que geram o caos conceitual, mas que aos poucos vão sendo significados pelos componentes desse grupo. A ordem e a desordem é necessária, pois “todo o conhecimento procura pôr ordem e unidade num universo de fenômenos que se apresentam com encadeamentos, multiplicidades, singularidades, incertezas, desordem" (Morin, 1999: 236).

Dessa forma, não estamos mais restritos ao pensamento cartesiano, linear, onde todos os processos devem ter a sequência início-meio-fim. O pensar complexo nos oferece uma lógica aberta, como o fim-início-meio do filme Pulp Fiction , ou qualquer outra forma racional que nos permita entendermos qualquer evento. Doll Jr. (1997:185) també foge do cartesianismo ao afirmar que numa boa história existe, exatamente, a quantidade suficiente de indeterminância para incitar o leitor. Para ele, é o elemento de indeterminância que faz com que o texto se comunique com o leitor, o que, por sua vez, induz o leitor a “participar” da história. Isso é talvez o estado de potência, a abertura a outras possibilidades, a predisposição para mais comunicação, a própria interatividade. Para a educação isso significa uma transformação dos papéis desempenhados por professores e alunos em sala de aula. De acordo com Silva (1999:159), o professor necessita interromper a tradição do falar/ditar, deixando de identificar-se com o contador de histórias. Ele necessita construir um conjunto de territórios a serem explorados pelos alunos e disponibilizar co-autoria e múltiplas conexões, permitindo que o aluno também faça por si mesmo.

Para tanto, é necessário pensarmos em “território” para além da noção espacial. É necessário pensarmos também em “territórios existenciais” (Guattari, 1995:38) como relacionados à maneiras de ser, ao corpo, ao meio ambiente, às etnias, às nações. Esses territórios, que o professor oportuniza a seus alunos explorarem, têm uma organização, um significado dado a eles pelo professor. Entretanto, à medida que os alunos passam a explorá-los, eles se desterritorializam, fogem da organização dada pelo professor, abrem-se a outros significados. No entanto, no trabalho conjunto de professor/aluno deve voltar a ocorrer uma reterritorialização, que por sua vez levará a novas desterritorializações e assim sucessivamente. Com isso, o ato pedagógico passa a ser o de construção de um mapa. “O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social” (Deleuze & Guattari, 1995:22).

Isto significa que o professor precisa ser muito mais do que “um conselheiro, uma ponte entre a informação e o entendimento, (...) um estimulador de curiosidade e fonte de dicas para que o aluno viaje sozinho no conhecimento obtido nos livros e nas redes de computador”. (Silva, 1999:160). Da mesma forma que o professor não é mais o transmissor, também não é “facilitador” – termo empregado atualmente na maioria dos projetos de uso de Novas Tecnologias em Educação. O papel do professor não é facilitar, como se este fosse um papel secundário ou como se o conhecimento fosse algo difícil para o aluno, que necessitasse de um especialista - o professor - para simplificá-lo, tornando-o então acessível ao aluno. Esse conhecimento é apresentado apenas pelo viés do professor, não passando por um processo de significação coletiva.

O papel do professor passa a ser ainda mais importante do que o papel do facilitador ou do transmissor, seja ele crítico ou não. O professor necessita trabalhar num contexto criativo, aberto, dinâmico, complexo. Em lugar da adoção de programas fechados, estabelecidos a priori, passa a trabalhar com estratégias, ou seja, com cenários de ação que podem modificar-se em função das informações, dos acontecimentos, dos imprevistos que sobrevenham no curso dessa ação (Morin, 1996:284-5). Isso implica trabalhar com incertezas, com complexidades. Na relação professor–aluno-conhecimento deve estar presente a interatividade, não como consequência da presença das novas tecnologias, mas como foco, como uma característica, um requisito, para a construção do conhecimento. Nesse contexto, institui-se uma nova dinâmica: o trabalho do professor intensifica-se, estrutura-se uma nova relação pedagógica e exige-se uma nova plataforma de trabalho, uma nova organização da escola, uma nova competência técnica e política dos professores.

Referências Bibliográficas:

DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Trad. Aurélio Guerra e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro : Ed. 34, 1995. 96 p.

DOLL Jr., William E. Currículo : uma perspectiva pós-moderna. Trad. Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre : Artes Médicas, 1997.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, SP : Papirus, 1995.

LEMOS, André. Anjos interativos e retribalização do mundo. Sobre interatividade e interafaces digitais. [on line] Disponível: http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos/interac.html. [Capturado em 29 de abril de 2000]

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999.

MACHADO, Arlindo. Anamorfoses Cronotópicas ou a Quarta Dimensão da Imgem. In: Imagem Máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. André Parente (org).

MORIN, Edgar. Epistemologia da complexidade. In: SCHNITMAN, Dora Fried (org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre : Artes Médicas, 1996. pp. 274-289.

MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. 3a ed., Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1999.

PRIMO, Alex e CASSOL, Márcio. Explorando o Conceito de interatividade: definições e taxonomias [http://usr.psico.ufrgs.br/~aprimo/pb/pgie.htm] 05/06/00

SILVA, Marco. Que é Interatividade in Boletim Técnico do Senac. Rio de Janeiro, v.24, n.2 maio/ago, 1998

SILVA, Marco. Um convite à interatividade e à complexidade: novas perspectivas comunicacionais para a sala de aula. In: GONÇALVES, Maria Alice Rezende (org.). Educação e cultura: pensando em cidadania. Rio de Janeiro : Quartet, 1999. p. 135-167.

Última atualização: sábado, 2 abr 2011, 01:57